Entrei. Eu não fazia a mínima ideia de como levantar o banco. Mercedes-Benz. Pensei na canção da Janis, escrita por Michel McClure. O banco era de couro. Preto cintilante. Pra variar, o suor escorria em minha face. Nada pra fazer. Nada pra dizer. Os homens passam a maior parte do tempo apenas executando tarefas, sem pensar. Nessas horas, fumar um baseado ajuda a colocar os pensamentos em ordem. Beber também. Como escreveu William James – o sujeito que conceituara o fluxo de consciência, imortalizada na prosa de James Joyce, Marcel Proust e Jack Kerouac: “A sobriedade diminui, discrimina e diz não; a embriaguez expande, une, e diz sim.”
Puta frase. William James – um doidão que tornou-se filosofo e psicólogo. O cara sacudiu a arte, sobretudo a literatura. Os bons são fodas, e morrem cedo. “Mesmo que o preferido dos deuses morra cedo, eles sobrevivem eternamente”, filosofou Nietzsche, em A origem da tragédia no principio da música.
Tô viajando, já.
Os vidros estavam abertos, e eu sentia o vento bater em meu rosto. E também, o incomodo sonoro. Um funk carioca triplicava o calor. E, claro, o humor se transformara rapidamente. Pensei em Hunter Thompson – o pai do jornalismo gonzo: “A música certa faz um carro sem gasolina se mover à noite.”
Thompson saiba das coisas.
“Abaixe a música, por favor”, pediu Gabriel.
“Não”, respondeu o motorista. “Nesse carro tem de ouvir funk ou sertanejo.”
Meneei minha cabeça, expressando desconforto e negatividade.
O motorista e os outros dois eram calouros de Direito, na PUC. Percebi isso, quando fitei um livrão de História do Direito na mão de um dos passageiros. Devia ter umas 400 páginas. “Cursa Direito, tem carrão e o cérebro minúsculo”, pensei.
Alguém comentou algo. Nem prestei atenção. Quero fumar. Quero beber. Quero meter. Quero declamar e escrever poemas. Quero, simplesmente, viver. Livre e solto. Sem regras, nem compromisso. Eu e minha mochila e alguns tostões e livros e garrafas e garotas. Pra que uma Mercedes de R$ 200 mil? À merda.
Não é você que a controla, e sim ela te controla.
O som balançava minha mente. E bagunçava meus pensamentos. Num momento, pensei que iria esquecer as coisas básicas da vida, como beber uma breja, ler um jornal e redigir um textão de putaria lírica. Psique peniana essa minha, meu. Ah, porra. Nem sei por que aceitei essa merda de carona, cara. Eu podia apanhar o coletivo, como todos os dias. Desde que entrei na faculdade, apanho-o. Qual seria o problema de apanhá-lo hoje?
Pensei na grana mesmo, bicho. O custo de vida subiu. E o cigarro. A bebida. O ácido. O fumo. A breja. Lembrei-me de uma cena de On the road, em que Keroauc e Dean abastecem o carro sem pagar pelo combustível. A mãe do vagabundo beat estava presente. Evidentemente, ela ficara espantada: “Como diz o Presidente Truman: precisamos reduzir os custos da vida.”
“Nem dá pra correr, caralho”, esbravejou o motorista, cujo nome nem dei o trabalho de perguntar.
“É claro, né”, disse Gabriel. “Tá cheio de carro na rua.”
Gabriel até que era sensato.
“Cê vai ficar aonde?”, perguntou ele.
“Na Praça Universitária”, sussurrei.
“Aonde?”
“Na Praça Universitária”, reverberei, com veemência.
“É que o som tá alto”, justificou.
Optei pelo célebre e louvável laconismo.
Gabriel dera uma risada. Também ri, cortesmente. E segui olhando pra rua. Paramos no semáforo, e um morador de rua estava deitado, embaixo de uma árvore. Fiquei com meus olhos vibrados. Tenho apreço pelos excluídos, pelos que não gozam de uma Mercedes de R$ 200 mil, pelos que saem que o mínimo é o excessivo. Creio que ninguém teve a sensibilidade de perceber o que se passava no outro lado da rua. Um morador de rua, nem grana, sem vergonha; estava deitado às 12h. Burocratas destilam suas frases clichês e arrogantes, dentro de seus ternos de R$ 2.000.
Uns têm uma Mercedez. Outros um Gol. Outros, a rua. Então, digo-lhes: viva o dionisíaco e o apolíneo. A verdadeira arte necessita destes elementos. A arte necessita da psicologia do poeta trágico.
Delírios ao som de The Doors.
(Marcus Vinícius Beck, estudante de Jornalismo, corintiano e escritor)