Home / Opinião

OPINIÃO

O ardil do delegado

Essa crônica só foi possível com a ajuda do engenheiro Everaldo Alencar. Estou autorizado a recontá-la ao meu modo. O protagonista de repente viu-se revestido da autoridade de delegado de polícia, coisa há muito desejada, mas que não deixou de provocar-lhe um arrepio das costas à nuca. Não é brincadeira prender bandido, fazer inquérito, colher depoimentos, envidar diligências e perícias. Catar a unha assassinos bravios? Coragem ele tinha, isto é, mais ou menos, o bastante para dar um berro e se isso não resolvesse aqui ó, pernas pra que te quero!
Antes procurara se informar sobre a cidade que lhe fora designada. Descobrira que ficava socada num pé de serra, no oco do mundo distando umas trezentas léguas de tudo. Soubera o bastante pra desejar arrear o cavalo e vazar no mundo. Para não assustá-lo ao ponto de fazê-lo desistir, relataram que lá se matava pouco, só um por dia e às vezes, por enfastio, prendiam um ou dois no tronco para enforcá-los no outro dia no pé de angico. Lá se escova os dentes com limão e aquele que chupa mel no favo ou lambe a colher é um tremendo dum viado. Macho mastiga abelha e dente se arranca com torquês de arrancar cravo de ferradura e tudo isso sem anestesia mostrando o que é ter saco rajado e não ter essas frescuras de tomar anestesia pra distrair um dente. Em virtude disso, algum desses cangaceiros sofria um pequeno desmaio com um grosso bago de lágrima a escorrer-lhe do olho esquerdo, não pela dor, mais pela comichãozinha na sola do pé que provoca um desvio primário nos tubos internos que sai das pernas e vai ao coração e do coração pro resto do esqueleto e o cabra sofre uma compressão lacrimal dos trezentos respondendo no cano de escapamento numa rapidez tal que muitas das vezes num da tempo nem de piscar o olho direito quanto mais o outro e o dito cujo, quando se apercebe já chumbou a cueca empesteando o ambiente. Isso quem explicava era o boticário, um baiano da cara braba que nessas alturas já engarguelara uns quatro rabo de galo, enquanto costura, sem anestesia, um rasgão de peixeira na barriga dum que brigou no cabaré e a bugraiada acha ele duma competência de arrepiar, mais que doutor farmacêutico cheio de noves fora e não me toques que só anda nos trinques, todo de branquinho e anel no dedo.
E agora, fazer o que? Cutucar a onça ou pinicar a mula? Se aceitar corre-se o risco de não ver os filhos crescerem, emboramente fosse solteiro. As namoradas, tão logo descobriam que nem uma bicicleta tinha de seu, mandava-o caçar saracura no brejo. Se mijar na espoleta será uma ignomínia asfixiante para o bom nome da família que ficara no sertão de Pernambuco e que nada sabe dele há mais de quarenta anos.
E entre abacateiros, laranjeiras, bananeiras e tufos de erva cidreira plantados no quintal da pensão onde morava, astuciou uma maneira de ficar bem na foto e não decepcionar quem o apadrinhava. Chamou o Tesim, moleque dos mais espevitado que correu a chamar Sacatrapa, cabra dos mais tinhoso pra arrumar um ardil. Sacatrapa chegando foi logo posto a par do funesto destino do amigo. De posse dum dinheirinho que o recém nomeado lhe passara, Sacatrapa foi ao bar do Dió e contratou, por um quarto do dinheiro, um peão do trecho, um tal de Chico Minhoca pra fazer uma pequena viagem e limpar o caminho pra quando o delegado chegar. Tão logo chegou, Minhoca espalhou na cidade, principalmente no cabaré que tava chegando um delegado muito brabo, uma onça, bandido nas mãos dele apanha mais que galinha pra largar o choco e cada um que ele manda pra conversar com São Pedro ele marca um pique na coronha do revólver, de forma que, ou arruma outro revólver ou aumenta a coronha. Das duas, uma.
Porém, o Chico Minhoca tinha que aguardar a chegada do Delegado e tão logo a chegada deste aprontar uma confusão no cabaré pras pessoas correrem a chamar o delegado que nem dava boa noite, dava era tapa, pescoção e pé na bunda do meliante. Tudo de verdade, isto é, meia verdade. Para o Chico era para parecer de mentira, tão me entendo? Mas Minhoca, cansado de apanhar da vida, lembrou do resto do dinheirinho que tinha no bolso e pensou: Eles que vão bater na puta que pariu, eu vou é mimboradaqui e zupt, zuniu no mundo.
Acontece que na mesma hora havia chegado um sujeito tão mal, mas tão mal que a mãe dessa peste batizava bicheira com o nome dele e claro, pra donde vai uma miséria dessas? Pro cabaré, lógico. Chegando foi logo quebrando o resto de dente da boca do pai da dona do puxa-faca, deu tiro na lamparina e chutou o cachorro que dormitava debaixo do banco. O delegado chegou e nem tomou conhecimento de quem era foi descendo a mutamba e foi tapa, pescoção e pé na bunda do meliante que gritava ai, ui, quê quié isso, carma, vamo cunversá, vamo parlamentar gente, aqui num é a igreja? Cadê o padre?
Everaldo, depois desse episódio, acha que o ex-delegado está amoitado em Aparecida e o sobrenome dele parece que é Lima.

(Alcivando Lima, [email protected])

Leia também:

edição
do dia

Capa do dia

últimas
notícias

+ notícias