Se fosse para descrever o Judiciário brasileiro a obra do escultor dinamarquês Jens Gaschiot é, indiscutivelmente, a mais perfeita tradução. A escultura mostra uma justiça representada por uma mulher velha, feia, demasiadamente obesa, quase morta, sendo carregada por um povo miserável, faminto, de olhos fundos e corpo extremamente magro.
O Judiciário brasileiro segue com sobrevida porque, “felizmente”, ainda existem em seus quadros juízes vocacionados e conscientes de suas missões como a de ser honesto e a de atender aos jurisdicionados em uma sociedade cada vez mais faminta de comida e de justiça. Infelizmente, todavia, o que predomina atualmente no Judiciário é uma casta que se considera acima da grande maioria da sociedade e se conduz como se vivesse em uma ilha da fantasia, absolutamente desconectada da realidade social que atinge a maioria do povo brasileiro. São pessoas que, oriundas de uma elite, adestraram-se em decorara apostilas de concurso público, ávidos para adentrarem na função judicante impelidos não pelos ideais de se distribuir justiça, mas para integrar um seleto grupo de habituados inveterados em nutrir-se das benesses não apenas injustificáveis, mas incompatíveis tanto com a realidade nacional quanto com a moralidade que se espera existir na mente de qualquer cidadão médio. Esses juízes, em razão de suas próprias índoles, veem o Judiciário como um castelo encantado a lhes pertencer e que deve ser utilizado como fonte de enriquecimento e como instrumento de demonstração de poder a serviço de seus egos e devaneios. Não é difícil verificar a existência de juízes que, caso tivessem que sobreviver trabalhando na iniciativa privada, por exemplo, como advogado, jamais conseguiriam manter um padrão de vida satisfatório; outros, sequer conseguiriam assegurar o próprio sustento.
É sabido que o salário de juiz no Brasil é um dos mais altos do mundo. Mesmo em países com padrão e qualidade de vida superior ao nosso a onerosidade do Judiciário não chega nem perto do que ocorre com o seu correlato no brasileiro. A diferença é que o Judiciário no Brasil é tão oneroso quanto desacreditado. Entretanto, ao que tudo indica, apesar da gravíssima crise de credibilidade, percebe-se que os juízes não estão nem um pouco preocupados em melhorar a imagem da instituição da qual se servem, alguns com um apetite vampiresco. Ao contrário. Estão dando de ombros para a péssima credibilidade diante da sociedade que o sustenta. Na última pesquisa realizada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), feita pela Toledo & Associados, o Judiciário no Brasil tem a credibilidade de apenas 12% dos entrevistados, perdendo apenas para o último colocado, o Congresso Nacional. É dizer; o Judiciário está empareado, em termos de credibilidade, com o Congresso, a instituição mais podre, desacreditada, falida moralmente, inútil e corrupta, sem mencionar a baixíssima qualidade intelectual de seus integrantes. O que é mais preocupante é que o Judiciário é quem tem a última palavra em relação às leis emanadas de um Legislativo putrefato e, ainda, é quem julga os atos emanados de corrupção, como os de improbidade administrativa, além de ser ele quem irá dirimir as contendas sociais que lhe são afeitas, como o patrimônio, a liberdade, a família, a vida, a honra das pessoas. Mas, e o que o Judiciário está fazendo para melhorar a sua imagem diante da sociedade? Por mais teratológico que seja, o Judiciário vem fazendo o oposto, agindo como quem vive em uma bolha, distante e em absoluto desprezo à sociedade. E não se trata meramente da arrogância, da prepotência e da megalomania de uma grande parte de seus juízes. Não se trata, ainda, do distanciamento da realidade social e econômica no Brasil, nem, tampouco, de sua forma sistêmica de atuação seletiva.
O Judiciário, em razão de suas reiteradas bofetadas na face dos cidadãos, vem despertando uma cada vez maior rejeição e ojeriza por parte da sociedade. Não é raro, em conversas com pessoas de diferentes níveis sociais, encontrar quem se nega a referir-se ao Judiciário como “Justiça”. Alegam que a terminologia “Justiça”, empregada para designar aquilo que se entende como um conceito abstrato que se refere a um estado ideal de interação social, no qual se mantém um equilíbrio razoável e imparcial entre os interesses, riquezas entre pessoas inseridas em um determinado grupo social, há tempos deixou de existir. De fato, os símbolos da Justiça tal qual nos foi transmitido no imaginário coletivo, através de gerações, já não existe mais, como o da deusa Themis, que, como sinal de ser justa e incorruptível, apresenta-se com uma espada que simboliza força e coragem, ordem e aquilo que a razão dita; a balança, simbolizando a equidade, o equilíbrio, a ponderação, a igualdade das decisões aplicadas em conformidade com a lei. A sociedade não consegue mais ver no Judiciário uma instituição de “Justiça”, na sagrada e elevada acepção do termo. Essa instituição tão importante para assegurar a paz e o equilíbrio social passou a ser aquilo que, de tão ignóbil, é retratado na escultura de Jens Galschiot, uma velha obesa, moribunda, espoliadora e extremamente cara à população. Esta que se vê obrigada a sustentar injustificáveis privilégios, ganâncias, cobiças, mordomias e uma sanha incontida para o enriquecimento sem causa por parte de uma casta perdulária e que se considera acima de tudo e todos, mormente quando o país está passando uma crise generalizada, em todos os seus aspectos: crise financeira, com cortes nos orçamentos em áreas tão essenciais à construção social como a saúde, a educação, pesquisa científica, segurança, saneamento básico. E crise moral, na qual o Judiciário, paradoxalmente, insere-se voluntariamente.
Não bastasse a morosidade, a exorbitância de custas e os altos salários pagos aos juízes, absolutamente destoante da realidade salarial da grande maioria dos brasileiros que trabalham no setor produtivo, há ainda ações emanadas do próprio Judiciário que parecem ter o propósito de ofender e vilipendiar ainda mais a paciência dos cidadãos que arcam com pesados impostos para sustentar uma corrupção generalizada. Exemplos dessa iniquidade e infâmia não é apenas a corrupção praticada no silêncio insuspeito dos gabinetes, sabidamente imoral e criminoso. Existem, igualmente, as ações praticadas imoralmente, porém, travestidas de legalidade ou dentro da normalidade jurídica. Isso só ocorre porque a índole do povo brasileira foi moldada para reclamar, mas não fazer nada e, com isso, extrapola a tolerância e alcança o ridículo de uma adestrada resignação sectária, a ponto de aceitar calado os absurdos imorais a serviço do sustento dos privilégios de juízes que fazem do Judiciário uma espécie de “casa da moeda” particular.
Como exemplo de imoralidade com aparência de legalidade, veja-se que um grupo de magistrados, com toda a pompa ritualística necessária a dar-lhes contornos de seriedade, reuniu-se imbuído dos mesmos nefastos propósitos, previamente ajustados, para procederem a um arremedo de “votação” na qual se decide sobre os seus interesses financeiros. Nesse ato, decidido em causa própria, resolvem aprovar uma aberração, às custas do miserável jurisdicionado, chamada de “auxílio-alimentação” com efeito retroativo. Ou seja, os “famintos” magistrados, árduos trabalhadores que não conseguem se alimentar, apesar dos salários exorbitantes, aprovam um benefício vergonhoso (não para eles) e, ainda, com efeito retroativo, como uma forma de receberem uma bolada de uma só vez, que irá, obviamente, para aplicações financeiras, já que até aqui ninguém morreu de fome. Esse tal de auxílio-alimentação vem no mesmo rastro fétido do auxílio-moradia, uma espécie de indecência que deu certo, já que o povo reclamou, mas não fez nada, concedido a todos os magistrados, inclusive aos já aposentados, aos que têm casa própria, aos que residem a poucos metros do local de trabalho e aos que nunca são encontrados nas comarcas onde deveriam estar. Há, ainda, para derrisão, se não fosse trágico, o auxilio-livro. Isso mesmo. Todo trabalhador decente retira do seu salário o pagamento de moradia, educação e alimentação, para si próprio e seus familiares. Juízes, não. O Judiciário, apesar dos altos salários dos juízes, precisa pagar moradia, alimentação e livros. Para este último item, é bom lembrar, que os gabinetes (dos raros juízes que leem) já contam com fartos volumes de livros e o jurisdicionado já mantém uma ampla biblioteca nos tribunais, evidentemente à disposição de todos os juízes.
Porém, alguém seria mesmo ingênuo suficiente para acreditar que os juízes gastam essa indecência apelidada de “auxílio-livros” comprando livros? Quem desejar uma resposta à essa indagação basta perquirir sobre o nível intelectual de uma grande parte dos juízes e juízas. Não é bem certo que vão encontrar muitos deles com uma cultura, ainda que seja tão-somente jurídica, capaz de justificar tantos penduricalhos. O momento deveria ser de ponderação, reflexão, mudanças de paradigmas, reavaliação de conceitos, tamanha é a crise que afeta todas as instituições públicas no Brasil, em especial o Judiciário, face à sua gravíssima perda de credibilidade. Entretanto, parece que os próprios juízes estão empenhados em levá-lo às ruínas não mais do descrédito – pois, isso já foi feito – mas, para a total destruição. Sim, chegará o tempo, que espero não demore tanto, em que a sociedade reagirá contra esse estado de absoluta degeneração moral institucionalizada.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – mlbezerraro[email protected])