Quando a primavera chega, junto com ela reaparecem os gostos das frutas do cerrado, este semidesaparecido desde a infância. Por mais que os carvoeiros levados pela urgência e acossados pela exploração de gente de todas as laias arrancaram tudo pela raiz, ainda sobraram uns poucos arbustos tortuosos, com seus caules de cascas grossas, sobre terrenos áridos e encascalhados, nascidos ninguém sabe como, nem por quê. Por insistência e resistência inexplicáveis, algumas frutas ainda acontecem. As sementes do cerrado têm a chamada dormência. Quando plantadas, quase não nascem, tornando difícil o reflorestamento com espécies originais. Criam-se técnicas para fazer romper o broto, porque na natureza, em sua maioria a semente apodrece. Essa característica torna ainda mais grave a situação das árvores do cerrado. Terra infértil e desmatamento monstruoso nos deixaram a erosão e o deserto. Culpados e inocentes, mas nem tanto, não reclamem: sem árvore, sem água!
Ainda assim, na feira, desde outubro se vê pitomba, panã, coquinho azedo, jabuticaba, mangaba, araçá, goiaba, cagaita e manga curraleira nativa, sendo a espada, rosa e ubá as mais frequentes, e cada qual com seu perfume. A lista vai se ampliando à medida que o verão se aproxima, quando então chega o valioso pequi, que sofreu os mesmos desvarios da ganância geral. Cada fruta tem seu aroma marcado e marcante, que nos leva para outro tempo e lugar, pois o cheiro, nossa memória mais ancestral nos remete a um passado ainda mais profundo do que o gosto. Ambos os sentidos se misturam, pois são próximos e se complementam.
Adoro manga e, como alardeio o fato, ganho muitas, mas meu alimento predileto é o murici, que de raro virou raríssimo, feito diamante. Arrancaram com trator quase todos os pés de murici, para fazer ferro guza. Quando se encontra um arremedo da fruta, é congelado ainda verde em pacotes, e ao ser descongelado está imprestável. Tão espetacular é seu sabor forte, envolto em odor inebriante, que é preciso comê-lo de joelhos. Não, não se morde um murici, pois é mínimo, pouco maior que uma pérola, mas se mordisca a fruta inteira dentro da boca, para sorver-lhe a carne escassa, e ter um prazer que as palavras não encontram. Porque murici é para sempre, ainda que os pés de murici sejam para nunca mais. Sim, há 40 anos procuro uma muda de murici para plantar em meu jardim, mas por ser irrealizável, ganhei do meu primo Cláudio uma muda de araçá, que plantei e estou cuidando como a um bichinho. O araçá é uma espécie de goiabinha amarela, de pouco aroma e muito sabor, nem doce nem azedo.
As frutas do cerrado são assim mesmo, deliciosas. Colher no pé uma manga ubá, vê-la próxima, pequena, amarela, às vezes com algumas pintinhas pretas, tenra, cheirosa como uma flor, faz encher a boca d’água ao se preparar para degustá-la. E então, romper-lhe a carne, numa dentada macia, molhada, saborosa, para devorá-la passo a passo, num ritual que os apreciadores fazem do jeito antigo. Morder uma manga faz barulho, o caldo escorre, e para não perdê-lo, chupa-se esse néctar, ao mesmo tempo em que se suja a cara. Todo o processo é um deleite como poucos, até mesmo encher os dentes com fiapos, e ver a bela infância retornar. E se continua a consumação do pecado, abatendo-se com ganância toda a circunferência da fruta, agora quase nua. Vai-se arrancando a casca com pequenas dentadas, mergulhando os dentes na carne dela, saboreando essa delícia de prazer fugaz. E tendo outra, mais uma, e tantas, que tempo de manga faz engordar e ficar amarelo.
Tão rico e agora tão pobre, assim está o nosso cerrado, hoje, cheio de vazios, um quase nada, apenas um gosto na memória.
(Mara Narciso, médica e jornalista)