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OPINIÃO

De fitas e fiteiros

Os da minha geração devem lembrar-se da expressão: “Fulano está fazendo fita.” A palavra remete a “fita” de cinema com o significado de “filme”, película de celulose em forma de fita, onde eram gravadas as cenas depois projetadas na tela. Ao mascarar a realidade fazia-se uma “fita”, ou seja, uma peça de ficção, similar a um filme cinematográfico.

Assim é que, se uma criança fingia-se de doente para matar aula, mães experientes logo percebiam a artimanha. E vinha a reprimenda: “Deixa de fita!” Às vezes, um beliscão (ou um puxão de orelha) funcionava como argumento para que o “fiteiro” ou “fiteira” se conscientizasse de que escola era assunto sério e não comportava embromação.

Fiteiro era também quem se mostrasse bonzinho demais, para impressionar colegas, pais ou professores, e receber elogios e prêmios. Tão execrado quanto, havia o “enxerido” – “exibido” – aquele que mostrava comportamento exemplar, tinha notas altas e disponibilidade infinita para ajudar, mesmo deixando de lado o jogo de amarelinha ou o pique de esconder. Nesse caso, a turma punha “na geladeira” o colega com vocação para áulico, de olho em recompensas que podiam ser imediatas ou a médio e longo prazo; às vezes na forma de leniência nos exames orais, ou na melhora da nota atribuída no boletim a “Comportamento” ou “Boas Maneiras”.

São retalhos da infância que me vêm à lembrança, quando vejo na Internet as cenas protagonizadas no Hospital Souza Aguiar pelo ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, o ínclito radialista e político Anthony Garotinho – nascido Anthony William Matheus de Oliveira.

Nas últimas horas, reverberavam nas redes sociais notícias sobre a prisão desse benemérito homem público, sob a acusação de crime eleitoral: a distribuição maciça de “cheques moradia” a pessoas carentes da cidade de Campos de Goytacazes, com vistas às eleições.

Tendo em vista os antecedentes e as virtudes que promanam do curriculum vitae desse exemplar cidadão, tais acusações deverão ser, no mínimo, infundadas. Certo é, porém, que a Justiça houve por bem determinar a prisão preventiva do patriarca da família Garotinho.

Em um primeiro momento, Anthony Garotinho até procurou mostrar fairplay e sorria para as câmeras ao ser preso. Mas começou a sentir-se mal; teria tido um “pico de pressão”, com dores no peito, palidez e sudorese, sendo levado às pressas para o Hospital Souza Aguiar, no centro carioca. Até que um juiz ranzinza determinou que fosse atendido no serviço médico do próprio Complexo Penitenciário aonde seria preso – e para onde deveria ser removido.

Foi aí que tudo mudou de feição. O até então debilitado ex-governador, tão prostrado e sofredor, encontrou forças para protagonizar cenas de rebeldia explícita e vigorosa, protestando e imprecando contra sua remoção para Bangu. Ergueu-se na maca, bracejou e lutou contra paramédicos, gritou ensandecido: “Eles vão me matar! Eles querem me matar! Muitos presos de lá fui eu que mandei prender quando era governador! Eu não vou, não vou, não vou...” Consta que foram necessários 10 homens para segurá-lo e mantê-lo quieto – enquanto (compreensivelmente) choravam a esposa, Rosinha e a filha Clarissa, herdeira política do patrimônio eleitoral da família.

Afinal, uma liminar do TSE reconheceu a Anthony Garotinho o direito de internar-se em hospital particular de sua escolha, desde que custeasse suas próprias despesas. O que certamente será o menor dos problemas. Na manhã de hoje – domingo – Sua Excelência foi submetido a uma angioplastia, com a colocação de stents. Será que, de início tudo foi fita que o medo transformou em realidade?

Nesse meio tempo, corre a notícia de que um dos Garotinhos (filhos) teria oferecido propina ao juiz para livrar o pai da prisão – quantias elevadíssimas, ao que se diz. Obviamente, não foram aceitas: estaria aí a razão do endurecimento do magistrado ao mandá-lo para o hospital de Bangu? De outra parte, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro pediu a abertura de inquérito para apurar o “tratamento privilegiado” dispensado ao réu-paciente no Hospital Souza Aguiar, a começar pela internação imediata, sem levar em conta prioridades pré-existentes.

No fundo, no fundo, tudo é fita – ou seria teatro? Todos fingem e representam o seu papel, com vistas a enganar o povo humilde, sensibilizar o eleitorado semianalfabeto e ganhar votos. Com promessas de priorizar “o social” e dar atenção especial aos carentes (não se usa mais a palavra “pobres”), cada qual defende a sua parte e busca benesses para si mesmo.

Em se tratando da família “Matheus de Oliveira”, há que lembrar o velho provérbio português: “Mateus – primeiro os teus.”

(Lena Castello Branco, escritora. E- mail: [email protected])

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