Quando militei na imprensa mineira, numa espécie de ensaio para poder ganhar tarimba e ingressar na de Goiás e do Tocantins, sempre quis mostrar que a nossa terrinha aqui é riquíssima em cultura: tem uma história, dolorosa, mas bonita; ainda conserva muitos vestígios dos tempos de pra-trás; mantém, ainda palpitante, através da boca dos mais velhos, seus episódios de heroísmo; teve, como toda cidadezinha que se preza, seus tipos característicos: os cachaceiros (Antonhão Pé-de-Janta, Domingo Cachaça, Zé Te Vi), os cegos (Zé Traíra, João Marimbondo, Chico Luís), e outros tipos populares, como Né Velho (que morou lá em casa até morrer), Chico Farinha-Seca, Joaquim Cursinho (que Deus o tenha!); os loucos, como Cazuza e Adivinhão, que até hoje evocam belas lembranças.
Mas se existem representantes do povinho miúdo, não fica fora do universo de nossas recordações gente importante, cujo exemplar mais marcante foi Tonhá Jacobina, que, por sinal, é avô de Dr. Dioran Jacobina, titular da 2ª Vara Cível de Goiânia, e pai do meu estimadíssimo Tasso Jacobina, que povoou minha infância como professor-estepe do padre Magalhães e agora, redescoberto por mim após muitos anos hoje mantemos contato diário, graças a esta tal internet, faca de dois gumes, que se desvirtua os costumes e degringola as famílias, tem seu lado bom de nos aproximarmos.
Porte garboso, gestos fidalgos (que fidalgas eram suas raízes), quase sempre de terno claro e um chapéu panamá, Tonhá Jacobina subia a rua e passava em frente lá de casa, cumprimentando todos com gestos comedidos, rumo à loja que tinha na praça. Casado com Carminha e genro do lendário homem sábio Casimiro Costa (a mais expressiva figura humana e política do Duro antigo), muita gente o conhecia por Major Tonhá, talvez pela elegância e pelo garbo que lhe eram inerentes.
Tenho a impressão de que o Major Tonhá até dormia de terno e gravata, pois não me lembro de tê-lo visto uma única vez, e no mais descontraído momento de vida doméstica, sem que estivesse impecavelmente vestido, sapatos, engraxados e os cabelos, já grisalhos, penteados de forma a cobrir e disfarçar o lobinho existente numa das entradas da testa.
A vida lhe transcorria mansa: os filhos, criando-se dentro da disciplina herdada dos ancestrais; a família, unida e sempre cultuada como precioso tesouro; as amizades, as melhores do Duro.
Sua loja (nem me lembro se tinha nome) não tinha empregados para despachar os metros de madrasto e chita, os gramas de pimenta-do-reino, as dúzias de botões e outras miudezas de sua pequena mas sortida loja.
As idas ao seu estabelecimento valiam mais pelo papo gostoso e descomprometido, do que pelos trens que a gente ia comprar. Muitas vezes, ia-se em busca de uma coisa qualquer de seu sortimento, mas acabava-se era envolvido pela linguagem cadenciada e correta do Major Tonhá, que entendia de tudo e dispensava atenção a quantos puxassem conversa. Muito se aprendia com dois dedos de prosa com ele.
Parece que foi hoje (a data foi guardada, pelo evento ocorrido), estávamos eu e Alano (neto dele-Tonhá) à porta de sua loja, quando ele, apareceu com feições carregadas, falou:
- Sabem, meninos, o doutor Getúlio suicidou-se.
Nós, regulando os dez anos de idade e ainda estudando a “Cartilha de Santa Luzia” na escola de tia Diana, íamos lá saber o que era "suicidou-se"? Mas pudemos calcular que coisa boa não era, quando ele emendou:
- Dias madrastos virão, meninos! O doutor Café Filho não vai aguentar as pressões!...
E falou muita coisa, de que só me recordo esses trechos. Sua capacidade de análise, para uma pessoa socada naquele ermo de sertão-de-maria-valei-me, era demasiado grande para a época, mas ele se mantinha rigorosamente atualizado, através do "Repórter Esso" no velho rádio a bateria.
Os filhos, à exceção de Carmem, todos conheciam os grandes centros: Paulo e Carlos venceram na vida em São Paulo; Carmu e Neide, as freiras carregaram pro convento pra viverem debaixo de norma das beatas; Tasso venceu como dentista em Brasília e depois mudou-se para Salvador; Nisinha, no Rio; Jacobina, que voltou do Sul puxando o erre, pitando na frente do pai e chamando-o de "coronel Tonhá", também deixou a terrinha e viveu sempre em Brasília em Brasília, onde faleceu.
Assim, os filhos foram aos poucos esvaziando o casarão da Rua de Baixo, vis-à-vis com a casa de Coque e Jaimira..
Até quando larguei a barra da saia de minha mãe e fui aventurar o mundo, conhecer ônibus e sorvete para depois voltar, ele estava diariamente sentado à porta da loja, mais por diletantismo do que por precisão, lendo um jornal atrasado ou conversando, e vez por outra mandando um menino qualquer ir à venda de Joaquininha comprar um quarto de quando pra fazer o traçado com a boa pinga da terra.
Creio que o Major Tonhá comerciava apenas mente por diletantismo e para ter um motivo para assuntar a rua, porque só atendia um freguês quando fosse algo que justificasse. Não sacrificava uma conversa interessante para vender coisinhas e burundangas, como carrinho e tubo de linha, meadas, sianinha e anzol, que qualquer loja tinha. Às vezes, chegava um menino com dez tões na mão (ele já olhava desconfiado):
- “Seo” Tonhá, tem agulha?
- Tem não! - respondia sem desgrudar os olhos do jornal.
- Mas minha mãe disse que comprou hoje aqui...
Ele voltava para o pequeno freguês, olhava-o demoradamente medindo-o da cabeça aos pés, e respondia meio reticente:
- Ter, tem...
E voltando-se para o jornal, pisava no pescoço da conversa:
- ... mas não tem quem despache!
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado - [email protected])