Este o senso comum sobre a responsabilidade do ex-sócio após sua retirada da sociedade limitada: permanecerá responsável pelas obrigações anteriores à sua saída por um período de dois anos após esse marco. Essa concepção popular tem origem justificada na regra estampada no artigo 1.003, parágrafo único, do Código Civil, segundo o qual o sócio que se retira da sociedade permanece responsável pelas obrigações que tinha como sócio até dois anos após a averbação da formalização de sua retirada na Junta Comercial na qual a sociedade está registrada.
Dessa regra legal, portanto, nasceu a interpretação popular de que, transcorrido esse prazo bienal, o ex-sócio passa a estar “seguro” de que não mais será importunado com qualquer cobrança atinente à sociedade da qual se retirou. Por muito tempo, inclusive, essa foi quase uma máxima nas discussões judiciais, o que também de certa forma fomentou a consolidação de tal ideia ordinária.
Acontece, porém, que alguns recentes julgados, em sentido oposto a esse cenário, têm reconhecido a responsabilidade de ex-sócios que se retiraram há mais de dois anos da sociedade em “situações específicas” e, portanto, os antigos sócios precisam estar alertas quanto a esse sentimento absoluto de “segurança” que atualmente têm após o transcurso do período em comento.
Em verdade, no que se refere às obrigações ordinariamente oriundas da condição de sócio, quando não se tenha havido qualquer ato de abuso de direito ou confusão patrimonial com participação do ex-sócio, a ausência de responsabilidade após o referido período de dois anos é inquestionável. Trata-se de desencarceramento expressamente previsto em lei (já mencionado).
Quais seriam, então, essas “situações específicas” nas quais os ex-sócios poderiam ter sua tranquilidade abalada? Quais, desse modo, as exceções que têm servido de fundamento para que alguns juízos estejam entendendo que esse prazo não seria empecilho para a responsabilização do ex-sócio?
Ora, em não tendo havido qualquer abuso de direito ou confusão patrimonial anteriores à retirada, como visto, a responsabilidade do sócio que se retira da sociedade se exaure após o transcurso dos dois anos da formalização registral desse ato. Mas, indaga-se: e no caso em que tais situações abusivas são verificadas? Pode o ex-sócio, nesse caso, ser atingido, após o período de dois anos, por obrigações oriundas de atos de abuso de direito ou de confusão patrimonial praticados enquanto ele era sócio?
A bem da verdade, não são poucos os precedentes que defendem que não, apoiando-se justamente na interpretação de que a limitação temporal de dois anos abrange qualquer tipo de obrigação de natureza cível (eis que não haja expressa segregação legal), garantindo-se que não se instaure uma eterna insegurança jurídica ao sócio que se retira da sociedade.
Todavia, e aqui se dá o alerta, também começam a se fazer numerosas as decisões no sentido de que pode, sim, se responsabilizar o ex-sócio, mesmo após o transcurso legal de dois anos após sua retirada, quando esse tenha participado de tais “situações específicas”. Entre elas, cito o Recurso Especial nº 1.312.591/RS, da ilustre relatoria de Sua Excelência o Ministro Luis Felipe Salomão, no qual se chegou à seguinte conclusão: a limitação temporal de dois anos, prevista no Código Civil, se restringe às obrigações do ex-sócio como sócio, ou seja, obrigações "ordinárias", não abrangendo eventuais obrigações decorrentes de atos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
Nessa oportunidade, entendeu a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça que naquelas situações específicas, autorizadoras da desconsideração da personalidade jurídica, há uma atribuição de responsabilidade não por obrigações “ordinárias” da condição de sócio, mas, isso sim, por obrigações “extraordinárias” decorrentes justamente do abuso, desvio de finalidade ou confusão patrimonial da pessoa jurídica. Caso fosse vetada tal responsabilização, estar-se-ia, para tal corrente de interpretação, beneficiando alguém que abusou de seu direito, liberando-o de todas as suas responsabilidades após um decurso de prazo relativamente curto, fomentando, inclusive, eventuais retiradas fraudulentas.
Se a obrigação, portanto, nasceu enquanto o ex-sócio integrava o corpo societário e se o ato que ensejou a desconsideração da personalidade jurídica também ocorreu em tal interregno, com sua participação, o ex-sócio poderá ser atingido mesmo após o prazo de dois anos, a depender do entendimento do juízo em que tal discussão for travada, não havendo mais espaço para uma “segurança absoluta de irresponsabilidade” após tal prazo, como popularmente hoje se costuma pensar.
Esse, pois, o alerta feito neste texto aos sócios que se retiraram ou vão se retirar de sociedade: em regra, suas responsabilidades se exaurem após dois anos de suas retiradas, porém, há, atualmente, decisões que desconsideram essa limitação temporal no caso de obrigações em que se reconheçam atos ilícitos praticados com participação do ex-sócio.
(Leonardo Honorato Costa, advogado e sócio do GMPR – Gonçalves, Macedo, Paiva & Rassi Advogados, vice-presidente da Comissão de Direito Empresarial da OAB/GO e diretor cultural do Instituto de Direito Societário de
Goiás – IDSG)