Depois que me engracei com o jornalismo cultual não tenho tempo para nada além disso. Sou um idealista com cara de imbecil. Mas tenho o universo dentro de mim porque ponho o melhor da minha alma em tudo o que faço. Por isso vivo o coletivo. Hoje, sem descuidar das cogitações desse espírito inquieto, o centro das minhas atenções, depois da família, é a cultura e o jornalismo.
Acredito em utopia. Inclusive na maior fantasia do Criador; o homem. Igual à mangaba, o homem só dá frutos nas alturas, no céu das quimeras. A cultura popular ensina que a mangaba é um santo remédio para curar a hipertensão. Mas, claro, não substitui o exercício do sexo feito com amor, ato final da sedução. Luiz Baiano, andarilho que contratei como caseiro numa pequena chácara na Vargem Bonita curtia sua paixão, além da cervejinha. Luiz arrastava as asas para o lado de Gerci, vizinha curvilínea com cara de aventureira safada.
– Patrão, ela tem um cangote tão branquinho.
Gerci era a mulher do dono da venda. Luiz passava mais tempo lá do que na chácara. O mato crescia, o cachorro latia e ele nada fazia. Assim passava o dia. Fui durão, mas gostava do seu jeito descolado da realidade. Disse-lhe que se quisesse vencer na vida teria que trabalhar.
– Sabe, patrão, a minha meta na vida é não vencer. Se me sentir realizado eu paro. Nem imagino onde será o ponto final da minha história. Os lugares para mim são estações de uma longa jornada. Sou um cidadão do mundo. É assim que me encontro. Já vivi em muitos lugares do Brasil. Não vou ficar aqui por muito tempo, por isso não vou polir as minhas grades. Quero me libertar da prisão rotineira dos lugares, das pessoas e de suas crenças. Um dia vou embora com a Gerci.
Fiz cara de zangado, pois ela era casada. Ele nem ligou para a minha bronca. Continuou seu blá-blá-blá...
Calei-me diante dessa cantilena. Mais tarde, depois do banho, Luiz jogou Leite de Rosas no corpo, me pediu dez reais para ir à festa de São João, na venda do Pato Rouco, do outro lado do córrego Sapé. Isso foi numa sexta-feira à noite. No sábado ao pôr do sol ele ainda não tinha voltado. Eu tinha um compromisso de visitar um tio em Palmelo e fui. Quando voltei, no domingo, nem sinal de Luiz. Pensei que tinha se ofendido com a minha bronca e ido embora. Na segunda-feira, pela manhã, quando saía para trabalhar ele apareceu sujo e arranhado. Mas, nada de grave.
– Patrão, o senhor nem imagina o que me aconteceu. No meio caminho tinha um buraco seco de cisterna. Caí e lá fiquei sem jeito de sair. Eu estava pertinho da venda do Pato Rouco. O pior foi ouvir a voz animada de Gerci dançando a noite toda. Para o senhor não duvidar de mim olha aqui os dez reais que me deu. (O dinheiro estava sujo e amassado). Quem me salvou foi o Zé do Leite que, agora de manhã, ouviu os meus gritos e jogou uma corda por onde subi até a boca daquele buraco.
Havia ingenuidade no jeito simples de Luiz Baiano; alma quase pura. Isso me comoveu a ponto de não ligar para o seu modo livre. Fui trabalhar certo de que o mato continuaria a crescer sem ele capinar. Pensei em arrumar outra pessoa para fazer o serviço e deixá-lo livre para cortejar a sua amada. Mas reconheço que havia um certo fascínio naquele sujeito. Nesse dia, preocupado, voltei mais cedo do que o costume.
– Luiz! Ô Luiz! Onde você está?
Pensei que estava no córrego que corre no fundo da chácara. Bati à porta do seu quarto. Silêncio... Um calango apressado estala as folhas secas que não param de cair do pé de guapeva. No alto um pássaro cantou:
– Bem-te-vi!
O vizinho, fofoqueiro, vem com a notícia que mal cabia na sua boca:
– Luiz Baiano fugiu com dona Gerci. Precisa ir à delegacia dar queixa, ele roubou o seu carrinho de mão.
Nem liguei para a lamúria do vizinho, nem ao carrinho de mão. Afinal, Luiz Baiano encontrara sua cara metade andarilha. Continuaria sua aventura pelo mundo. No íntimo desejei que fossem felizes. Há algo misterioso que chama os andarilhos a rodar o mundo nas patas do cavalo do tempo, do amor e da morte.
Carpe diem, quam minimum credula postero (aproveite o hoje, confie o mínimo possível no incerto amanhã). Carpe Diem!
(Doracino Naves, jornalista; editor do Portal Raízes)