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OPINIÃO

Nem leão, nem gazela

“Todas as manhãs, a gazela acorda sabendo que tem que correr mais veloz que o leão ou será morta. Todas as manhãs o leão acorda sabendo que deve correr mais rápido que a gazela ou morrerá de fome. Não importa se és um leão ou uma gazela: quando o Sol desponta o melhor é começares a correr.”

Provérbio africano.

As iniciativas de flexibilização da legislação trabalhista estão novamente na agenda prioritária dos empresários, do governo federal e do Congresso Nacional. Neste artigo, será feita breve reflexão sobre o sentido histórico desse movimento e os riscos que ele traz para o padrão civilizatório construído pela sociedade brasileira.

Dois séculos de disputas

É por meio do trabalho que as sociedades produzem o bem-estar e a qualidade de vida. Desde a revolução industrial, no século XIX, a economia capitalista transforma o trabalho em mercadoria (mão de obra) a ser comprada livremente para ser empregada na produção. Desde então, os trabalhadores lutam para se libertar das amarras que os aprisionam nos limites da sociedade de mercado. Regular as relações sociais de produção por meio das leis e dos acordos coletivos visa colocar limites à livre exploração dos trabalhadores.

Nesses quase dois séculos, a engrenagem de produção capitalista aumentou a produção da riqueza, viabilizou a acumulação de capital e promoveu a desigualdade e, muitas vezes, a pobreza. A sociedade de mercado gestou a questão social e a economia de mercado, a luta de classes.

Os trabalhadores desenvolvem, em cada tempo histórico, diversas formas de lutas para disputar as regras que regem a produção e a distribuição da riqueza e da renda. Duas grandes guerras fizeram emergir na Europa, no pós-45, a consolidação do Estado moderno, a democracia e os pactos sociais que combinaram a acumulação de capital com estratégias distributivas, de tal modo que a era de ouro do capitalismo conformou, em 30 anos, um sistema tributário progressivo, com políticas sociais de promoção e proteção social e laboral. A disputa distributiva e regulatória ganhou centralidade na sociedade, com legislação protetora e organização social, especialmente o sindicalismo, capaz de representar interesses. As negociações coletivas ganharam importância como mecanismo regulador das relações de trabalho e os sindicatos conseguiram o direito de representação coletiva e de organização desde o local de trabalho.

Os empresários constroem, desde sempre, uma resistência à expansão da regulação. Nos anos 1970, já eram visíveis os sinais de que fariam tudo para dar o troco ao modelo regulatório que emergiu no pós-guerra. Conformaram nova força econômica, política e social, denominada neoliberalismo, comandada pelas grandes corporações transnacionais e, especialmente, pelo sistema financeiro e rentista. Ronald Reagan e Margareth Thatcher são baluartes desse movimento, que se tornou hegemônico em quase todo o mundo. Os neoliberais prometem entregar crescimento econômico, vendem felicidade, exacerbam o individualismo e a meritocracia. Não entregam o crescimento. Ao contrário, provocaram a monumental crise de 2008, promovem o aumento vertiginoso da desigualdade, exacerbam o individualismo que adoece uma sociedade conectada e que vive a solidão, a depressão e o acirramento dos conflitos sociais.

Afirmam, com convicção divina, que é necessário competir, reduzir o custo do trabalho, diminuir o tamanho do Estado, aliviar a carga tributária e reduzir impostos, liberar o acesso aos mercados, limitar o direito de representação coletiva e o papel das instituições. Coagir, reprimir, cooptar são verbos que os neoliberais precisam conjugar, instrumentos necessários para o convencimento, renovados todas as manhãs quando acordam. Adoram uma sociedade de leões e gazelas, com a certeza de que são leões e de que não morrerão de fome.

Gazelas, comecem a correr.

Há 30 anos, a lógica neoliberal busca desregular o mercado de trabalho para reduzir o custo do trabalho, flexibilizar as regras que promovem e protegem os empregos e os direitos laborais, diminuir o poder de proteção coletiva dos sindicatos e aumentar o poder de coerção das empresas sobre os trabalhadores. As crises e o desemprego criam ambiente favorável para o alcance desses objetivos. Tem sido assim na Europa. Agora, passa novamente a ser assim no Brasil.

É preciso lembrar que, nos anos 1990, dezenas de iniciativas legislativas desregularam direitos trabalhistas, criaram formas precárias de contrato de trabalho, de flexibilização da jornada de trabalho sem pagamento (banco de horas) etc. A terceirização foi uma grande sacada e passou a ser uma maneira estrutural de reduzir custos, transferir riscos e fragilizar a ação sindical. Precarização, informalidade, arrocho salarial, desemprego, desigualdade, pobreza são expressões desse movimento que agora retorna.

As lutas sociais no Brasil acompanharam a disputa regulatória que os trabalhadores fizeram mundo afora. Avançou-se na produção social e política de uma legislação de proteção laboral e sindical reunida na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), bem como na estruturação de um sistema de relações de trabalho que, por meio da negociação coletiva, representa o interesse coletivo dos trabalhadores e avança na formatação dos direitos laborais. Em 1988, a ditadura civil-militar foi superada com um conjunto de novas regras que se consolidaram na Constituição. Ambas, Constituição e CLT, têm sido permanentemente alteradas.

Os sindicatos sempre apostaram nas negociações e na prevalência do acordado, sempre que é superior ao legislado. É assim que, há décadas, a negociação coletiva promove, de maneira incremental, avanços nos direitos laborais.

Agora, mais uma vez, os empresários propõem reformas na legislação para que o negociado prevaleça sobre o legislado e se faça a modernização da legislação trabalhista. Para eles, modernizar é sinônimo de flexibilidade para reduzir, desmontar e desmobilizar o padrão civilizatório duramente construído. Negociar, para eles, é aumentar a capacidade de submeter e enquadrar, para que o acordado possa reduzir aquilo que a legislação define como piso.

Não somos nem leões nem gazelas. A inteligência (pensamento e memória) e a história (conhecimento de si e do outro) permitem desenhar projetos de futuro e de sociedade nos quais a igualdade, a liberdade, a justiça, a cooperação e a solidariedade deem outro sentido para as manhãs.

Por isso, o movimento sindical luta para: modernizar a legislação trabalhista a fim de incluir aqueles que ainda estão desprotegidos e criar novas regras para as ocupações que surgem; fortalecer as negociações coletivas; coibir a fragmentação sindical; ter organizações sindicais representativas desde o chão da empresa; garantir uma institucionalidade que promova a solução ágil dos conflitos; ampliar direito de greve e de organização; que todos os trabalhadores estejam protegidos pelas leis laborais e previdenciárias, pois um terço ainda está sem nenhuma proteção.

O movimento sindical acredita que, na democracia, as escolhas se fazem pelo debate público, capaz de afirmar o sentido geral e o bem comum de cada dimensão da vida em sociedade, pela ampla participação, pela capacidade coletiva de corrigir erros e de aprender.

(Clemente Ganz Lúcio é Sociólogo, diretor técnico do DIEESE, membro do CDES – Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e do Grupo Reindustrialização)

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