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OPINIÃO

Quebranto não se cura com remédio; só com benzeção

Desde tempos imemoriais, o homem vale-se de elementos místicos para curar seus males: são as rezas, os patuás, os cordões bentos, as simpatias.

Assim como existem pessoas que possuem força para extirpar os males, existem aquelas que levam o estigma do mal: gente de mau olhado e de mão ruim. Não é que tenham a intenção de prejudicar seu semelhante; parece ser uma força incontrolável, maldição que age à revelia do próprio detentor daquela força. Na maioria das vezes, pessoas de mau olhado (que o sertanejo chama de "zói ruim") e de mão ruim são piedosas, muito beatas e até reconhecem a maldição que levam e chegam a advertir que não lhes propiciem condições de atuação da força.

A mão ruim, para quem não conhece, pode ocasionar uma série de coisas: piora o estado dos doentes em que toca, o sabão que ele pega não espuma, as coisas que ela pega no fazer (bolo, doce, sabão etc.) não rendem e rapidamente se perdem, e chegam até a secar plantas de onde ela tira frutos, folhas ou flores.

O mau olhado é mais abrangente, pois basta que a pessoa olhe para que os doentes piorem, as cicatrizes inflamem, os doces e o sabão derrenguem, as crianças sadias fiquem, subitamente, acometidas de febre alta, vômitos, diarreia e acabam num lastimável estado de depauperamento cuja cura só tem remédio na reza para quebranto.

Tanto para o mau olhado como para a mão ruim, quanto mais estiver com sangue quente seu possuidor, mais violentas são as reações, e há casos em que só o escutar da voz é o suficiente para causar os males. Casos de mau olhado e mão ruim existem aos montes.

Quando eu era pequeno - conta minha mãe - tive um quebranto que marcou história na minha família; quase fui para a cova, não fosse uma reza bendita que me salvou, já quase morto, pois quem me pusera quebranto tinha um mau olhado tão violento, que até passarinho que ele admirasse na gaiola ia ficando triste e acabava morrendo.

Em 1972, fui para o sertão tocantinense, de onde sou e, na fazenda, fiz umas visitas ao pessoal dos arredores, contando casos, tomando café, comendo sebereba e recolhendo filosofia do povo. Levava comigo meu primogênito, de dois anos, que era lourinho e traquinas, chamava a atenção de todo mundo.

À tardezinha, o menino já chegou com febre, vômitos e caganeira. Eu sempre ouvira falar em quebranto, mas não imaginei que fosse o seu caso. Em questão de horas, o menino estava cadavérico e completamente fora de si, sem ao menos dar sinais de estar ouvindo os nossos chamamentos. Debalde esgotei os remédios que sempre levo para a fazenda. O menino piorava. O tempo carrancudo da tarde desfez-se num temporal que tornava impraticável enfrentar quase cem quilômetros em busca de médico na cidade.

Todos em volta da cama davam sua contribuição em palpites, até que a mulher do vaqueiro, diante do aspecto da criança, perguntou:

- Ancê saiu cum o minino pr'outro lugá?

Expliquei onde estivera, e ela com uma segurança que nos contagiou, disse convicta:

- É quebranto! Manda buscá cumpade Lídio no Capim de Boi, que logo o neném tá bom!

Um animal foi arreado às pressas, e um positivo foi buscar Lídio, que não demorou muito a chegar. Com espantosa naturalidade, pegou um galho de pimenteira e rezou. Rezou e saiu, despedindo-se e dizendo que o mal estava cortado. Uma hora depois - se muito - o garoto estava sentado na cama, conversando com todo mundo e pedindo o que comer. No dia seguinte, apesar das feições chupadas do repentino desando, estava brincando normalmente sem nada sentir.

Um parente meu, Dr. Alexandre Costa, que era professor catedrático na Faculdade de Medicina da Bahia, não obstante ser filho da terra, sempre levava na pilhéria esses negócios de rezação em quebranto. Numa de suas idas ao sertão, seu filho, Buzu, foi acometido de quebranto.

Ele, como médico, disse ser uma doença lá que a Medicina catalogava pelos sintomas - infecção intestinal, gastroenterite, não sei. E tendo esgotado todos os recursos médicos a seu alcance, aceitou, embora a contragosto, que uma velha benzedeira lhe rezasse sobre o filho. Foi mesmo que tirar com a mão.

Não me recordo bem, mas parece que o doutor Alexandre quis até levar a velha benzedeira junto com ele pra Bahia.

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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