Em nosso artigo de 5.2.17, aqui no Diário da Manhã (disponível gratuitamente em “impresso.dm.com.br”), discutimos a análise psiquiátrica do parricídio (filhos que assassinam os pais ), tendo como base o caso de Suzane von Richthofen, aquela garota rica e bonita que ajudou o namorado matar os pais dela para ficar com seus bens.
A inteligente leitora Soraya Matta, questiona minhas constatações: “Você não acha possível que ela seja simplesmente uma pessoa má?”
Para responder adequadamente a esta questão, temos de entrar na complexa divisão entre o que é “doença” e o que é “caráter”. No caso de Suzane é inegável que ela tinha uma grande “frieza” em relação aos pais. Mas, há muita gente que é fria com a família e nem por isso é “doente”. Por exemplo, é muito comum que políticos, empresários, sejam frios com seus entes queridos. Podemos citar várias situações que denotam isso: a) p.ex., colocar os entes queridos, familiares, para serem “laranjas”, bodes expiatórios, de seus malfeitos. b) os abandonando em momentos difíceis, - p.ex., esposa dando à luz – para cumprirem suas agendas de poder ou dinheiro (“sr., seu filho está no hospital , com apendicite, sendo operado agora” – “Infelizmente estou no meio da campanha, não posso ir vê-lo”). C ) as amantes, que acabam com a vida das esposas e filhos. D) cobrem os filhos de presentes, no intuito de suprirem sua falta afetiva. E) não se importam muito de colocarem a família em “frias” por causa de suas falcatruas. Ou seja, tudo isso mostra que tais políticos, empresários, são frios, mas seriam, como Suzane, “doentes”? Então..., o que diferenciaria a frieza normal daquela patológica?
Há vários elementos: 1) na frieza patológica o doente não tem muito pudor, medo, arrepio, mal-estar, remorso, nojo, náusea, ansiedade, por exemplo, ao cometer grandes violências físicas. Estas alterações patológicas da emocionalidade podem ser constatadas por meio de exames médicos: reflexos psicogalvânicos, reflexos piloeretores, provas neuroautonômico-vegetativas, VCN, poligrafia neurofisiológica com FR, FC, PA, etc . 2) Violências patológicas, cujo custo-benefício é muito alto, ou seja, como no caso de Suzane, matar mãe e pai para ter acesso a dinheiro para comprar benesses que ela já desfrutava em casa (os pais eram ricos) . 3) Violências feitas diretamente (o “frio normal” costuma delegar a violência a terceiros), feitas sem planejamento longo, estratégico, ou então com pouco e rudimentar planejamento. 4) Violências ou atos ilícitos realizados com planos de fuga ou planos de encobrimento muito malfeitos, impulsivos, pouco intelectualizados. 5) Violência brutal. A violência do “criminoso normal”, ou “criminoso por falha de caráter”, é mediada, leve, psicologicamente distante da vítima (p.ex., desviar recursos da merenda escolar, de crianças com as quais ele não tem contato). Esse tipo de crime não deixa de ser uma violência contra a criança, que padecerá de fome, mas é uma violência “distante”, mediatizada. 6) Violência contra pessoas de quem deveria gostar, contra pessoas que a amam, contra pessoas muito indefesas, e que despertam compaixão. 7) violências muito grandes, para cobrir necessidades pessoais muito pequenas (a questão do “custo-benefício”, que citamos acima ). 8) violências contra pessoas que o viram crescer, ajudaram crescer, que o alimentaram, que o amaram, ou seja, contra pessoas de quem recebeu amor e a quem deveria dar amor, ter compaixão.
A “frieza” é uma característica psiquiátrica que pode estar presente em várias pessoas normais, não-patológicas. O que faz pressupor que a frieza é patológica é a incapacidade que o indivíduo tem de controlá-la por meios psicológicos ou sociais.
O “frio de caráter” (ao contrário do “frio patológico”), que é o “frio normal”, consegue moldar-se às regras sociais, consegue disfarçar bem em sociedade, consegue esconder, protelar, e conter sua frieza por muito tempo e em vários momentos e ocasiões. Quando o indivíduo não consegue conter psicologicamente, socialmente, essa frieza, isso é um sinal que a disfunção cerebral ultrapassou o limite de controle social e psicológico da mente.
Quando a parte social e psicológica da mente não conseguem vencer a parte biológica, estamos diante de uma doença , e não de um problema de caráter. O caráter é capaz de deter e “metabolizar”, frear, os impulsos biológicos. Mesmo em casos onde há alterações cerebrais que pioram e aumentam estes impulsos biológicos, poder-se-ia haver mitigação destes sintomas por famílias equilibradas do ponto de vista psicológico e social, p.ex., famílias onde haja muita moral, amor, espírito de respeito, de religiosidade, disciplina, ocupação, papéis bem definidos entre os pais, mães e filhos, pais que mantêm, ao mesmo tempo, o amor e a disciplina, em níveis desejáveis e equilibrados, pais que não se demitem, não se ausentem, não se intimidem de exercer sua função “fálica” quando necessário.
Este artigo terá continuação na próxima sexta-feira.
(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra no Hospital Filantrópico Asmigo ([email protected]). Escreve no Diário da Manhã (acesso gratuito em “impresso.dm.com.br”) as terças, sextas, domingos)