Não posso nem desejo mentir sobre minha situação pessoal. Tive sorte na “loteria da vida”, o que me garantiu acesso irrestrito a boa alimentação, moradia, saúde e educação. Sou aquilo que costumam chamar de privilegiado, alguém cuja existência foi e é pontuada por vantagens definidas e decididas não por mim, mas por estruturas sociais que beneficiam uns em detrimento de outros.
Dos privilégios que acumulo, ser branca é um dos mais convenientes. Não sei o que é sofrer discriminação racial, mesmo tendo vivido fora do Brasil. Quando fui socialmente lida como “latina”, compreendi o que significa sentir na pele alguma espécie de preconceito estrutural, e meu enfrentamento da xenofobia, que estava aliada ao indefectível machismo, despertou o interesse em compreender o funcionamento de estruturas sociais de dominação.
Visto que sou mulher, no feminismo procurei explicações sobre o preconceito como ferramenta de manutenção das hierarquias injustas dos sistemas sociais. Também ali encontrei estratégias de resistência às formas com que opressões estruturais afetam meus direitos e liberdade.
Simone de Beauvoir declarou: “Não se nasce mulher. Torna-se”. A partir da minha existência privilegiada, sinto poder afirmar que também não se nasce feminista, torna-se. E é no devir feminista que constantemente aprendo uma importante lição: treinar meu olhar para enxergar a realidade não somente a partir dele, mas também do olhar da outra.
Uma das características mais marcantes do privilégio é poder pensar que algo não é um problema simplesmente por não ser um problema nosso. Por isso, diz-se, privilégio causa cegueira. Mas é aquilo que se esconde por trás das cegueiras do privilégio o que mais precisa ser visto. A cegueira do privilégio precisa ser vista. Aí há uma dificuldade.
É preciso disposição e treino para ver o que é (tornado) invisível. E foi o feminismo que me ensinou a ver não apenas os fenômenos sociais, mas minha própria existência e ações, pela perspectiva da outra. Especialmente da outra que não teve a mesma “sorte” que eu, cuja vida é balizada por enfrentamentos que, pessoalmente, desconheço
Costumo brincar com a frase mais famosa do companheiro de Simone, Jean-Paul Sartre, pois penso que o paraíso, e não o inferno, são os outros. O jardim de delícias metafísico serve aqui como metáfora para a plena justiça social, utopia cujo alcance depende da assimilação de muitas perspectivas. E para poder ver perspectivas tornadas invisíveis é preciso aprender a ouvir as versões sistematicamente silenciadas.
O relatório anual da Anistia Internacional “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo 2016-2017” alerta para um ataque global às liberdades por governos que infringem leis e deliberadamente enfraquecem instituições criadas com o objetivo de proteger nossos direitos. O relatório também informa que vivemos em um dos piores países da América Latina para ser mulher. No Brasil, a violência letal contra mulheres aumentou 24% durante a última década.
De acordo com o Mapa da Violência de 2015, em dez anos a taxa de feminicídios para brancas caiu 9,8%, mas para negras aumentou 54%. No lançamento do relatório da Anistia Internacional, que aconteceu com o debate “Mulheres negras na resistência e mobilização por direitos humanos”, Sueli Carneiro, fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, afirmou que elas “carregam em seus corpos as marcas e os estigmas das múltiplas formas de opressão e por isso mesmo são também e ao mesmo tempo portadoras dos requisitos indispensáveis para emancipação de todas e todos nós”.
Na ocasião, Jurema Werneck, fundadora da ONG Criola e diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, destacou que ser mulher negra é confrontar diariamente o peso e a força desses inimigos chamados racismo e sexismo.
Que o 8 de março de 2017 sirva para assinalar o exercício constante do devir feminista, revelando privilégios para que quem os tenha passe a escutar o que é silenciado e ver o que é tornado invisível.
(Joanna Burigo, fundadora da Casa da Mãe Joanna e mestre em Gênero, Mídia e Cultura)