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Diário da Manhã

Publicado em 17 de março de 2017 às 02:33 | Atualizado há 8 anos

Não há verbo mais bacana que comer. Viver e amar podem ser mais relevantes, mas não são tão divertidos. Sua natureza intransitiva não exige complemento, embora seja fundamental uma boa companhia. Tanto significado embutido em duas vogais e três consoantes moldou a cultura humana a partir do hábito elementar de ingerir alimentos. Daí para a sacanagem foi um pulo. Tudo isso é muito lindo.

Viver ganha amplitude como verbo fundamental. Para comer é preciso viver, embora, para a criatura, basta existir para ser comida. Por outro lado, não se vive sem comer. A gente come em nível celular. Toda sorte de nutriente, sal mineral, aminoácido ou água abastece cada célula do organismo. Aquele trem vira um ensopado químico que cospe fora proteínas, hormônios e toxinas necessários à vida.

Amar é verbo de profunda relevância, embora íntimo ao que nos torna humanos. Para se amar, é preciso estar vivo, embora seja possível nutrir o sentimento pelos finados com a mesma intensidade. Quem ama está necessariamente vivo – o objeto desse amor, não. Pode-se amar a comida; ou, então, ama-se comer. Em um caso, ama-se o objeto; no outro, o ato. Ainda que se odeie tudo, sempre se ama algo. Entre amar e viver, o verbo comer conecta os outros dois como suporte.

Para a gramática, comer não é apenas intransitivo. Para a felicidade geral da nação, pode ser transitivo direto ou indireto. Aí, mora a beleza da palavra. Pode-se comer de qualquer jeito. Comer, verbo intransitivo, não exige complemento. Mas sua variação transitiva direta permite comer maçã e pudim – não apenas se come, come-se algo. Ou, ainda, pode ser visto na perspectiva transitiva indireta, tornando-o chique, ligando o verbo a uma preposição, como quando se come em jantares.

Nossa cultura tende à quase obsessão com o verbo comer. Basta ir ao dicionário. Vai estar lá os principais significados e sinônimos da palavra. Pode ser um sinônimo de alimentar, de ingerir nutrientes, ou de perpetuar a espécie, comer alguém mesmo. São as duas principais maneiras de se admitir a palavra, uma culta e outra do dia-a-dia. Ambas belas à sua maneira.

Não há necessariamente canibalismo aqui – salvo se for tupinambá. Talvez porque o ato comer alguém tenha relação com um tipo diferente de alimentação. Como diriam os cafajestes, essa criatura de caráter peculiar que tempera as relações humanas, comer implica em nutrir o amor por uma pessoa. Não se desenvolveria o amor sem comer o objeto amado. Afinal, pode-se afirmar com propriedade que alguma coisa é gostosa apenas se você comê-la.

Talvez seja um traço comum às culturas humanas. Não é exclusividade brasileira associar o ato de comer ao de fazer amor – essa também uma correlação entre sexo e o verbo amar. Asiáticos, europeus e africanos também estabelecem a conexão entre as palavras e os atos. São leituras possíveis do emprego do verbo comer em gestos que são naturais e relevantes.

Caso de uma senhorinha, já na casa dos seus 60 anos, cujo patrimônio curvilíneo ilustra sua relação apaixonada com o verbo comer, aqui, em sentido intransitivo. Dia desses, após fartar-se no almoço, decidiu que carecia de um complemento. Estava, a bem saber, de olho num belo pudim de leite ou num pratinho de ambrosia. A filha que a acompanhava estava relutante, preocupada com o aspecto transitivo direto.

– Mamãe, não coma mais.

– Quero só um pouquinho.

– Lembre-se do que o médico disse sobre sua saúde.

– Se for para eu morrer hoje que seja docinha…

 

(Victor Hugo Lopes, jornalista)


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