Três décadas atrás, era comum o uso do termo especialista para identificar alguém que tenha estudado ou trabalhado com profundidade determinado assunto ou tema. Há quem se valha do título acadêmico para ilustrar a distinção em seu currículo ou simplesmente deixá-lo à vista no ambiente de trabalho. Mas esse diferencial tem perdido o sentido nos últimos anos.
A velocidade com que o conhecimento tem se disseminado não permite mais a ninguém arvorar-se na condição de especialista. O próprio título acadêmico, reconhecido pelo Ministério da Educação, tem natureza lato sensu. Isso significa que um algo a mais, mas sem tanta profundidade. Consiste basicamente num curso concentrado sobre determinado ramo de conhecimento, cuja conclusão exige uma produção intelectual de natureza dissertativa avaliada por uma banca de professores.
Há uma tendência cada vez maior de se evitar a superespecialização. Hoje nota-se uma busca maior por profissionais que consigam lidar com áreas distintas de conhecimento com proficiência e segurança. Médicos demandam conhecimentos de direito; advogados precisam de noções de engenharia. Físicos podem contribuir para a alta gastronomia, bem como biólogos são necessários para o desenvolvimento da música e das artes.
Aos poucos, esvazia-se a tese de que uma pessoa vai construir integralmente a carreira na área em que se formou. Isso é muito bom. Se a globalização disseminou o conhecimento e o tornou mais acessível, a veloz evolução das tecnologias de comunicação tem provocado uma demanda cada vez maior por profissionais com múltiplas experiências.
Analistas de conteúdo que consigam trabalhar com volume complexo de análise de dados tem sido cobiçados pelo mercado. Curiosamente, nem todos são ou devem ser graduados em exatas. Há uma necessidade cada vez maior de se confrontar ramos tradicionais do conhecimento com abordagens diferentes.
A minha geração, entre 30 e 40 anos de idade, vive essa transição. Colegas de ensino médio que haviam se preparado para exercer uma determinada profissão já deram guinadas em outros rumos. Fisioterapeuta virou advogado. Engenheiro se tornou jornalista. Gestora de recursos humanos agora é chef de cozinha. Físico ingressou na polícia. Por aí vai. A lista não tem fim.
Há duas abordagens principais, a meu ver, para essa tendência. A mais óbvia é a demanda do mercado. Não é, a rigor, uma novidade. As profissões vão se adaptando com as necessidades de cada época. Recentemente, um estudo sugeriu que uma das piores profissões em 2017 era repórter de jornal – tanto do ponto de vista de desgaste pessoal quanto da remuneração. Há 80 anos, era uma carreira para poucos e muito reconhecida.
Outro ponto é a maturidade com a qual se escolhe o curso superior. O primeiro, pelo menos. Muita gente, que não se realizou com a primeira graduação, encarou uma segunda. Não é uma transição fácil. Mas tende a ser compensatória. Pelo menos do ponto de vista do crescimento emocional e intelectual.
O dilema de optar pela vida profissional quando ainda está se formando a própria identidade é tarefa das mais árduas. A turminha que hoje se engalfinha no Enem para disputar limitadíssimas vagas nas universidades públicas passa por esse duplo escrutínio. A despeito do elevado nível da concorrência, das cotas sobre as vagas e das limitações pessoais, diferentes gerações tem mantido boa convivência.
Basta ir a qualquer curso em universidade pública para encontrar alguém com outra graduação em meio a um punhado de jovens. Se houver troca de experiências, essa proximidade pode ser muito válida. A atual geração tem demonstrado boa tolerância com a minha, por exemplo.
A piada antiga era que se formavam nas universidades profissionais que dominavam com absurdo nível de detalhes determinada rosca de um parafuso que só existe em uma ponte na França. A era do superespecialista acabou. Seja pela saudável ação do mercado ou da realização pessoal, os profissionais que estão emergindo das universidades são bem mais completos e criativos, capazes de relacionar diferentes áreas do conhecimentos. Todos temos a ganhar com essa nova realidade.
(Victor Hugo Lopes, jornalista)