— As chaves? Onde estão as chaves? Provei uma por uma do molho pendurado sobre o velho aparador, tão empoeirado quanto a minha lesa liberdade. Tudo em vão... Continuo aqui plantada no meu cálice estreito de ilusão.
Violeta buscava incessantemente atravessar o portal. Queria ser flor amarela no sol arroxeado do existir. Insurgiu-se contra aquele mundinho estreito. A velha fotossíntese diária ofegava os seus botões. Precisava florescer noutras paragens. Ser pétala suculenta nas refeições matinais do dia engolindo a noite.
Trancafiada em si sobre o móvel esquecido, ajoelhava solenemente suas hastes sedentas, como um condenado à cadeira de morte implorando clemência.
— As chaves! Alguém viu as chaves? Por favor.
O pedido ressoava trêmulo pelas linhas entrelaçadas das teias aracnídeas tecidas nos entretempos. A consciência frágil ressoava o eco do abandono. Não havia mais ninguém ali para ouvi-la. Apenas a saliva espessa de um títere regador, de tempos em tempos, quebrava maquinalmente o silêncio.
Violeta, suspirosa, embalava a saudade com seus prólogos e epílogos:
— Bem fez Ipomeia, vistosa trepadeira. Vivia livre dando mudas pelas dobras dos pergolados, até que se mudou de vez, sem termo ou paradeiro. Uma aventureira! As irmãs Marias-Sem-Vergonha? Minhas queridinhas “miolos moles”, felizes sem terem porquês, foram levadas com vaso e tudo por um nobre forasteiro apaixonado. Comigo-Ninguém-Pode, alma valente, há tempos despediu-se para transplante. Sem regresso – suspiros.
— Foi quando dispuseram o corroído invólucro esmaltado sobre o aparador abandonado nesse canto ermo do terraço, exilando dentro dele meu sonho de Jardim Suspenso da Babilônia.
Entretanto, houve para Violeta época de esperanças...
Durante algumas primaveras ela acreditou piamente que Antúrio, montado numa ventania enfeitiçada, como num cavalo de herói, iria salvá-la daquela masmorra. Mas... no fundo ela sabia... fora durona demais com ele quando ainda enamoravam entre uma e outra fresta na esgrima outonal das Espadas-de-São-Jorge. Certa manhã, ele saiu para um banho de sol. Nunca mais voltou.
Expectativas desfeitas, Violeta mirou o reflexo egoico no cerne espelhado. Absorta na imagem do que poderia ter sido a vã existência, dia após dia elencava cada “se...” daquilo que não foi, é, ou poderia vir a ser. “Se”...
Até que, numa das madrugadas em transe, o âmago orvalhando lágrimas pelos vãos dos filamentos, ressurgiu melancólica lembrança da Orquídea... “era sensível e melindrosa, feito alma de poeta. Muito sábia, e grande conselheira também”.
Foi dessa forma solene que Orquídea tentou iniciar Violeta ainda criança nos mistérios transcendentais da Transmutação:
— Em um mesmo penhasco tanto pode brotar pedra, quanto rolar flor... – pausa para o olhar perdido no horizonte.
— Observe o exemplo dos cactos, florescendo aqui e ali nas inóspitas ribanceiras – ensinava em tom sereno, sugestivo e misterioso.
Assim, tomada pela consciência do presente e o vendaval efusivo do pretérito, Violeta começou a sentir uma febril seiva gotejante deslizar pelo corpo ressequido, como a inexorável areia de uma ampulheta chegando ao fim.
Cansada de viver de inexistências, resolveu pela última tentativa:
— Alguém por perto? Tragam-me as chaves – voz encorajada.
O rumor da solidão pareceu reverberar com maior profusão na áspera maciez das pétalas enlutadas.
Mas Violeta, de rara estirpe, não definharia a esmo. O que mais a fragilizava, também alimentava o desejo de transcender.
Arrombando num só átimo o vestíbulo do futuro, Violeta decide pular...
(Rúbia Garcia, advogada, discente do curso de Letras e de pós-graduação em Docência Universitária da UEG, campus Inhumas, membro do Movimento Casa da Ponte de Itauçu-GO)