No dia primeiro de abril de 1964 – dia da mentira – tem início, através de um golpe, um dos períodos mais cruéis da história do Brasil: a Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-85). Apesar da repressão e da violência ser a tônica de todo o período, seu auge se dá durante o governo do Gal. Emílio Garrastazu Médici (1969-74). Se por um lado este governo representa o ápice do Milagre Econômico – crescimento econômico vertiginoso propiciado pelo aumento da dívida externa –, por outro representa o momento de maior violência por parte dos órgãos de repressão policial e ideológica, personificadas naquilo que Carlos Fico denominou de “comunidade de informações” e a “comunidade de segurança”.
A “comunidade de segurança” é, basicamente, o conjunto de órgãos responsáveis por fazer valer o aparato violento do Estado de exceção. Centrados no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), que havia sido criado ainda nos anos 40, o governo de Castelo Branco (1964-67), inaugura o uso desse aparelho repressor com a “Operação Limpeza” (perseguição a inimigos políticos da recém instaurada ditadura, cassação ou demissão de comunistas históricos, prisão e deportação de apoiadores do governo anterior etc.). A partir daí o Dops, torna-se o principal órgão de repressão da ditadura militar.
Conduzindo a atuação da “comunidade de segurança”, temos a “comunidade de informação” cujo o objetivo principal era a vigília, espionagem e a censura. Ainda que já houvesse um forte aparato repressor desde o golpe de 64, esse passa a ser organizado mais de perto por dois órgãos associados em 69: o Destacamento de Operações de Informações e o Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). A principal função do DOI-Codi era, inicialmente, a produção da suspeita, ou seja, buscava-se criar uma rede de espionagens e vigilância capaz de gerar um ambiente de tensão política no qual todos (alguns mais que os outros, é verdade) eram considerados suspeitos de atentarem com a nação brasileira. Baseada na Doutrina de Segurança Nacional – ideologia que se baseava na luta contra o perigo comunista interno – a criação de um universo de suspeita fez com que tanto a “comunidade de segurança” quanto a “de informações” se aproximassem. Nos anos 70, a atuação dos dois irá se confundir, com o DOPS fazendo espionagem enquanto o DOI-Codi, sobretudo sob a chefia do famigerado Carlos Alberto Brilhante Ulstra, executando prisões e torturas.
Outro fenômeno marcante da repressão durante os anos de chumbo, com mais intensidade no Governo Médici, foi a censura prévia. Esta também é presente na vida brasileira desde os anos 40 e era muito bem aceita pelos conservadores. No entanto, antes do golpe, a censura se destinava, basicamente, à dois campos: aos elementos contrários à moral e aos bons costumes, bem como qualquer comportamento que fosse contrário à família brasileira e ao catolicismo.
Este tipo de censura prévia permanece na ditadura, mas surge um novo fenômeno, a “censura revolucionária”, como diziam os militares, ou seja, a censura destinada a conteúdos políticos considerados subversivos. É interessante notar o funcionamento distinto das duas formas de censura: a primeira, já institucionalizada, era organizada por censores profissionais que fiscalizavam toda produção artística e cultural; a segunda, inicialmente praticada de maneira acobertada – através de bilhetes e telefonemas para as redações dos jornais – foi se tornando também institucionalizada, alcançando um espaço permanente na redação dos grandes jornais, em meados dos anos 70.
A existência dessas duas comunidades buscava blindar os governos militares enquanto a Aerp (Assessoria Especial de Relações Públicas) buscava fazer propagandas tanto do governo quanto dos ideais da “revolução” de primeiro de abril. Ainda assim, algumas informações contra o governo circulavam, as vezes de maneira subliminar, as vezes porque eram impossíveis de serem escondidas. Este segundo, é o caso da morte do diretor do departamento de telejornalismo da TV Cultura Vladimir Herzog. Vlado foi levado para depor no DOI-Codi e foi torturado e morto nos porões da ditadura. No laudo médico oficial apontava-se suicídio por enforcamento com um cinto (adereço que era retirado assim que o depoente era levado para a cela). A morte, tratava-se, na verdade de um assassinato por parte dos torturadores do Estado, com a anuência do exército. A ditadura, instaurada no dia da mentira, usava de uma mentira, para eximir-se da culpa de matar um homem inocente. Uma mentira para preservar um governo que instaurou uma democracia de mentira. E que, para continuar a mentir, utilizava todo seu aparato repressor para censurar jornais e impedir a divulgação dos reais acontecimentos.
Neste emaranhado de mentiras é que surge o trabalho do artista conceitual Cildo Meireles, intitulado “Inserções em circuitos ideológicos”. A “arte radical” de Cildo – como diria Ricardo Sardenberg – foi desenvolvida durante os anos 1970 e se divide em dois: “Projeto Coca-Cola” (1970) e “Projeto Cédula” (1975). A genialidade destes está no fato de ele provocar uma subversão dos ready-mades de Marcel Duchamp. Para o dadaísta, o ready-made consistia em transportar objetos comuns (geralmente industrializados) para os museus tratando-os como arte . Com Cildo o fim é oposto: expor elementos artísticos em objetos cotidianos e de grande circulação.
No “Projeto Coca-Cola”, o artista decalcava frases em vasilhames de Coca-Cola e os colocava novamente em circulação. Com a garrafa vazia, a mensagem era praticamente imperceptível, no entanto, quando estava cheia podia-se facilmente ler frases como “yankees go home!”, por exemplo, expondo a insatisfação de parte da população brasileira com a ingerência do governo dos EUA em território nacional – elemento que pode ser visto também em “Zero Dólar” (1978-84), do artista . Mais interessante ainda é o “Projeto Cédula” que, basicamente, era o ato de carimbar em notas de Cruzeiro (moeda corrente na época) a indagação “Quem matou Herzog?” em tinta vermelha, colocando-as posteriormente em circulação.
Esta obra se aproxima do costume antigo de deixar mensagens anônimas em papel-moeda, desde mensagens religiosas a declarações de amor. No entanto, a mensagem de Cildo não é nada inocente, como geralmente ocorria. Ao expor de forma direta a indagação, rompe com a mentira explícita criada pelo governo militar. Se os meios de comunicação de massa não podiam contar a verdade, os carimbos de Cildo inquirem por essa verdade. Com esta obra, o adágio de Maiakovski – “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária” – torna-se realidade.
Ao optar pelo anonimato das notas, Cildo aponta para dois objetivos distintos: um primeiro, e mais óbvio, é a busca de proteger-se da violência da repressão da ditadura; em segundo lugar, o artista também faz repensar os limites entre obra-público-artista – podemos considerar, assim, que Cildo Meireles expõe um projeto de arte que torna a obra como pertencente mais ao público que ao próprio artista. Além disso, ao expor os embustes da ditadura militar, o demiurgo chama atenção para as mentiras que imperavam no governo militar. Com Cildo, a arte se torna uma espécie de portadora da verdade.
(Prof. Victor Creti Bruzadelli, mestre em História pela UFG, professor de escolas particulares de Goiânia e apaixonado por arte. Possui o Instagram @arteehistoria, no qual semanalmente posta obras de arte e faz análises voltadas para alunos do Ensino Médio