Dez ministros do Superior Tribunal de Justiça divulgaram nota em defesa do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, após ele ser acusado por um juiz de ter recebido propina para conceder Habeas Corpus ao ex-governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho.
Em mensagem de áudio enviada a um grupo de magistrados no WhatsApp, o juiz Glaucenir Oliveira acusou Gilmar de receber dinheiro para conceder o HC. O juiz em questão foi o determinou as prisões dos ex-governadores Rosinha Matheus e Anthony Garotinho.
Quais as provas apresentada pelo acusador? Nenhuma. Mas prova é coisa passada de moda. Bastam convicções. Se o juiz tem convicções, como Dellagnol contra Lula, já é o bastante para levar Gilmar ao banco dos réus e condená-lo por corrupção ativa. Convicções deveriam ter força probante e a palavra de um juiz de Direito, tal como os nobres da idade média, deveria dispor de fé pública. Assim, retornaríamos alegres e felizes aos critérios medievais de jurisprudência, antes do insuportável liberal e humanista Cesare Beccária instituir as bases do direito penal civilizado.
Não se permite que, sem nenhuma prova,apenas por ouvir dizer nas ruas, um juiz possa assacar e desqualificar outro, apenas porque decidiu um caso de maneira contrária ao magistrado que examinou a questão anteriormente, diz a nota assinada pelos ministros do STJ. Eles classificaram a situação como uma autofagia da magistratura,em que um juiz que não gosta da decisão do tribunal se arvora em corregedor, brandindo ofensas públicas e levianas a outro juiz à falta de bons argumentos jurídicos. Este Juiz deslustra a magistratura nacional.
Uma coisa é discordar das decisões dos juízes. Elas devem ser públicas justamente para que possam ser criticadas. Coisa bem diferente é insultar juízes que decidiram de forma contrária ao partido que defendemos.
O ministro Gilmar Mendes é um homem controvertido. Seu comportamento heterodoxo, às vezes indecoroso, não é a conduta que se espera de um juiz. Um juiz deve ser sóbrio, discreto, longe de escândalos. E nunca de e se meter em política partidária. Exceto se fizer como fez o governador Flávio Dino, do Maranhão; Ele abandonou a magistratura, filiou-se ao PC do B e disputou a eleição.
Já as decisões do ministro Gilmar Mendes comportam outro tipo de abordagem. Falem o que quiserem, mas ele tem se mostrado o mais garantista dos ministros do Supremo. Ele tem concedido Habeas Corpus soltando muita gente. Não conheço o teor das petições, por isso não vou entrar no mérito. Mas conceder habeas corpus é prerrogativa de Ministro do Supremo. Suas decisões nem sempre agradam a adversários dos agraciados. Mas, deveria o ministro, antes de decidir, pedir prévia autorização aos jornais, aos partidos, ao Mebelê, à Joyce Hasselman, ao Reynaldo Azevedo, ao Dellangnol, ao Moro, a todos esses aiatolás da mídia cabocla e seitas intolerantes de esqeurda e de direita?
Uma recente decisão de Gilmar, coibindo as conduções coercitivas a la Moro, sem que o conduzido tenha sido previamente intimado para o ato, levou a direita xula cair no chilique. Impressionante o faniquito da senhora Hasselmam. Ela não entende absolutamente nada de direito constitucional e de direito penal, mas se acha altamente qualificada para reprovar a decisão do ministro. Argumentos jurídicos? Ela não os tem. Seu único argumento é “Gilmar enlouqueceu”. Ela pensa que qualquer meganha tem direito de vida ou morte sobre os cidadãos, embora, legalmente, não tenha.
A decisão de Gilmar, no caso, foi absolutamente correta por estar em linha de consonância com a constituição. No caso, culpe-se a constituição. Condenem-se os constituintes de l988, que tomados de um furor humanista, liberal e democrático, escreveram um texto escandalosamente libertário.
Nem toda decisão de Gilmar vai na linha do garantismo. Ele, por exemplo, é a favor da antecipação de pena para quem teve sentença condenatória confirmada em segundo grau. E os argumentos dele nem são jurídicos. São falaciosos e moralistas. Mas ele já deu indicações de que pretende rever sua posição. Ele, dizem, aderiu a uma tese de Dias Tofolli, segundo a qual deve-se dar efeito suspensivo a recursos especiais contra decisão confirmatória de sentença condenatória penal. É uma boa solução para compatibilizar o princípio da presunção de inocência com os interesses da justiça penal.
Vejamos como pode se dar, na prática, uma situação como esta. Vejamos o caso de Lula. Quem acompanha o caso do Triplex, percebeu que o ex-presidente foi condenado sem provas. O juiz Moro deu força probante às “convicções” dos acusadores. Mas sua sentença baseou-se, mesmo, no depoimento de um único delator premiado. A lei das organizações criminosas é taxativa em proibir condenações com base apenas no depoimento de um único delator. Só por isso a sentença de Moro, a “irretocável”, já passível de reforma. Ao infringir disposição expressa em lei, o juiz já criou as condições de possibilidade de um recurso especial, junto ao TRJ.
Mas o pior nem é isso. Eu e muitos juristas de vasta sabença jurídica, e até de alguns ex-juízes, achamos que o processo contra Lula é absolutamente nulo desde a origem. A 13ª Vara Criminal de Curitiba não tem competência para julgar o caso do Triplex. A competência seria da Justiça Federal de São Paulo, posto que foi em São Paulo, e não no Paraná, que o fato em tese delituoso ocorreu.
Certo, a conexão e a continência deslocam a competência para o juízo onde por primeiro o fato principal foi conhecido. A competência de Moro é para fatos que se relacionem à corrupção na Petrobras. Mas o próprio Moro, ao afirmar em embargos de declaração, que não há relação entre a aquisição do Triplex e a propinagem na Estatal, já deixou patente que não tinha competência para julgar Lula. Sentença proferida por juiz incompetente é nula. E competência, quando absoluta, como é o caso, pode ser arguida em qualquer grau de jurisdição. Não cai em preclusão. Assim, mesmo que o TRF-4 venha manter a sentença de Moro, existe a possibilidade de o STJ anular o processo desde o início, determinando que a causa recomece na justiça federal de São Paulo. Até que esta questão prejudicial seja decidida, seria iníquo negar efeito suspensivo ao recurso.156
Todo esse alarido contra Gilmar Mendes, nos últimos tempos, tem origem no movimento neo-nazista brasileiro. Parte daqueles leigos presunçosos que acham que suas cabeças ocas são a fonte material do Direito e que a lei legislada, devidamente publicada no Diário Oficial... ora, a lei! A lei não vem ao caso. O que vem ao caso é uma paródia do imperativo categórico de Kant, que passa a vigorar com a seguinte redação: “Age de modo tal que o teu preconceito mais mesquinho seja uma lei universal”.
Gilmar Mendes, o bad boy do STF, o falastrão que bate boca em plenário com seus pares, pode certamente ser uma tipo bem desagradável. Mas como juiz, não tem, até aqui, praticado atos moralmente reprováveis. Não se julgue o ato do juiz pelo comportamento do homem. Não seria um julgamento justo. E quando ele afirmar que dois mais dois é igual a quatro, podem acreditar.
(Helvécio Cardoso, jornalista)