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OPINIÃO

Lugar de fala: breves apontamentos para suscitar um debate necessário

Constantemente, presente den­tro de movimentos sociais, tais como os feministas, há o uso do “lugar de fala”. O uso remete ao pro­tagonismo de fala de quem sofre al­gum tipo de opressão. Muitas vezes ele é incorporado como um mecanismo, uma saída, um contraponto ao silen­ciamento da voz de minorias sociais por grupos privilegiados em espaços de debate público. Este conceito de­fende a existência de diferentes “efei­tos de verdade”, a depender que quem está enunciando. Ele trata da necessi­dade de se ter experiência para se falar sobre algo, “quem sofre na própria pele pode falar por si”, imprimindo a ideia de legitimidade mediante uma pers­pectiva de vida, uma posição social.

Os que defendem a utilização de tal ferramenta, por assim dizer, afirmam que ela serve para garantir a auto re­presentação discursiva dos grupos entendidos como subalternos, des­privilegiados (econômico, social ou geograficamente). O “lugar de fala” também é compreendido como um mecanismo para equilibrar as rela­ções de poder, visto que o sujeito uni­versal estaria em desgaste, e o que sur­ge na cena das disputas ideológicas são vários sujeitos. A intenção seria acabar com a mediação política dos “privile­giados” que falam em nome e no lu­gar dos “subalternos”. Tal conceito au­xiliaria a compreender que “o quê” e “como” falamos marca as relações de poder e reproduz preconceitos. O lugar de fala seria o resultado de uma ênfase nas vivências individuais a partir da ex­periência em determinadas categorias sociais, a exemplo da raça, da cor e do gênero. Entretanto, sua rápida difusão e popularização, principalmente nos meios virtuais, gerou alguns efeitos pa­radoxais, tais como na correlação entre o “lugar de fala” e a representação.

Claro que a intenção aqui não é apagar a existência das diferenças ou a necessidade de reconhece-las, delas terem representatividade e voz para suas demandas. Falar “sobre” é dife­rente de falar “em nome de”, não es­tamos afastando isso. Mas, há de se ressaltar que existem duas versões do conceito “lugar de fala”: uma políti­ca e uma de caráter militante. A ver­são política do conceito está ligada a estratégia, a organização política dos sujeitos, de eles estarem diretamen­te relacionados com uma luta, serem porta-vozes. Já a versão militante, en­cara o conceito de uma forma episte­mológica, em que estar no “local de fala” é ter a verdade. Exemplo dessas diferenciações é o conhecido artigo de Linda Alcoff, “The Problem of Spe­aking for Others”, onde ela discute até que ponto existe validade nas elabo­rações teóricas, no caso de filósofos e teóricos sociais, por outros que são diferentes do falante. Segundo Alcoff, o reconhecimento de que há um pro­blema em falar para outros surgiu de duas fontes. A primeira refere-se ao lu­gar, pois de onde se fala, afeta-se o sig­nificado e a verdade do que se diz. Ou seja, a localização de um orador (social ou identitária) impacta epistemologi­camente as alegações de tal falante, e pode servir para autorizar ou desauto­rizar o discurso. A segunda fonte en­volve o reconhecimento de que não só a localização é epistemologicamente importante, entretanto, certos locais privilegiados são discursivamente pe­rigosos, principalmente a prática de pessoas privilegiadas falarem por ou em nome de pessoas menos privile­giadas, o que aumentaria ou reforça­ria a opressão do grupo focalizado em determinada discussão.

As discussões referentes ao “lu­gar de fala” perpassam os estudos da Análise do Discurso, em especial na conceituação de Formação Discur­siva (FD), da escola francesa, pois, para essa teoria somos o que os di­versos discursos que nos alcançaram ao longo da vida fizeram de nós. A FD está diretamente ligada ao lugar dis­cursivo, esses discursos subjazem o lugar de onde os sujeitos enunciam. Esta formação determina o que pode e deve ser dito. Todavia, não somos apenas o discurso, não falamos de apenas um lugar discursivo, a depen­der das condições exigidas usaremos um ou outro. Diante disso, chega­-se ao encontro da chamada posição discursiva, ou seja, as diferentes po­sições do sujeito a serem ocupadas. A exemplo, no “lugar discursivo” mi­diático, o jornalista pode se ocupar de diferentes posições, a depender das condições disponíveis a ele. Par­tindo da ideia de que não existe dis­curso sem um sujeito que o enuncie; não existe um sujeito sem os discur­sos que o constituíram e o constitui; e, consequentemente, não existe su­jeito sem as ideologias por trás desses discursos formadores, então temos: nossa forma sujeito-histórico, a qual influencia nossas posições e a identi­ficação com grupos discursivos.

Com tudo, o foco desse texto não é em si a Análise do Discurso e sim os aspectos políticos do “lu­gar de fala”. Isso se dá por que é ne­cessário pensar de que maneira o conceito diagnostica e impacta a representação social na política moderna. Afinal, quais são as sub­jetividades que estão imbricadas no momento em que se fala? O que o lugar de fala faz com a legitimida­de do sujeito na ação política?

Em várias sociedades, como exem­plo, a brasileira, os ideais republica­nos de direitos universais, cidadania comum, igualdade formal e demo­cracia possibilitam a abertura de ca­minhos para se sublinhar o “lugar de fala” como modus operandi de políti­cas [ditas] progressistas, mas que po­dem acabar não sendo. Para um me­lhor entendimento e uso da categoria “lugar de fala”, é preciso um anterior levantamento e compreensão, atra­vés de apontamentos histórico, polí­tico e teórico, referente ao conceito. E, o mais importante, perceber a possí­vel ênfase liberal da política nos indi­víduos presente nesse conceito. O “lu­gar de fala” seria um individualismo por via oblíqua?

Ademais, o conceito “lugar de fala”, no ambiente militante, possui vasta quantidade de limites aparentes: ser usualmente tomado como “autori­dade de fala”, usado como estratégia interna de indivíduos de um movi­mento social para aparelha-lo; como dispositivo de inclusão e/ou exclusão; politização das experiências indivi­duais vs a coletividade e risco de retor­no de uma essencialização das identi­dades que os próprios movimentos sociais lutaram tanto para desnatura­lizar. Ou seja, se, por um lado, setores progressistas inserem as diferenças como sinônimo de uma diversidade em prol da democracia, por outro, vol­ta-se às armadilhas de simplificar as formas de pertencimento.

(Lays Vieira, jornalista, socióloga e mestranda em Ciência Política na Uni­versidade Federal de Goiás. Um agrade­cimento especial para a acadêmica de Letras (UFG) Carolina Aires, pela ajuda com a teoria da Análise do Discurso. )

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