Há uma paz imensurável nesses campos de meu Deus. Campos nascidos à vontade e ternura do chão. Na simbiose dos elementares dados pelo Pai Altíssimo, eles surgiram e se derramaram pelas campinas e pelas serras do que, mais tarde, se chamaria Goyaz!
Campos que não foram plantados. Quem semeou a arnica lá no pé da serra? Quem plantou o pé de bacupari naquele canto, junto ao grotão? Quem pôs a chocar a seriema? Nesses campos, o dedo de Deus está a todo instante a pincelar maravilhas no Cerrado do sonho, na Geografia dos sentimentos.
Há, no Cerrado, mapas de encantamentos!
Os Reis Magos, vindos da roça, com enxadas nos ombros, trouxeram milho, farinha de mandioca bem torradinha e batata doce. Tinham, eles, por norte, uma estrela e vários sonhos. Qual teria sido a intuição e vontade daqueles Reis Magos caboclos ao escolherem aquela estrela vaga e seguir, no espaço e no tempo, com a determinação de quem vai ao encontro de uma quimera?
No céu eles liam um texto de rara beleza; histórias de um Menino Santo que escolhera um rancho em meio ao mato, para nascer e dormir. Eles não sabiam, mas escolheram caminhar, pois toda estrada é um mistério.
Para os Reis Magos caboclos, com suas enxadas sujas de terra, estava tão alta aquela estrela. Pétala luminosa na imensa rosa do infinito, a cintilar o seu vocabulário de luz, em meio à incontável multidão de estrelas. Era capaz que fosse apenas mais uma de milhares de estrelas que salpicam o universo, a flutuarem nesse oceano de beleza universal onde estão os mais belos modelos e os mais puros matizes.
Essa estrela era flor solitária em meio à multidão de um jardim; signo vazio a vagar no ar imaginário. Estava aquela estrela indistinta no vasto universo semeado de constelações. Era um grão de areia na infinidade da criação de Deus.
No entanto, naquele dia tão distante, os Reis Magos caboclos escolheram aquela estrela para ser permanente guia, e, escolhendo-a, eles souberam dar-lhe um sentido. Separaram-na da diversidade anônima e acrescentaram-lhe o encanto de uma significação. Ela sozinha, já valia uma constelação inteira ou toda a via láctea, mas ficou cheia de doce encanto, mesmo pequenina em tanta distância, e, no entanto, já era maior que os vagos infinitos da amplidão; já continha o todo, em sua diminuta parte iluminada. Era uma e todas, estrela e tudo.
Essa estrela tão distante e tão vaga era guia no rumo do lugar onde o eterno fazia-se real para salvar a humanidade. Os Reis Magos caboclos escolherem aquela estrela na poeira cósmica e a fizeram única; caminho para a revelação, a galáxia como verbo movimentando-se na construção de nossa beleza universal.
Jesus Cristo também nasceu junto aos animais de carga e de custeio, bichos cansados de suas labutas e sofrimentos. Deus preferiu a beleza silente do estábulo entre o bafejar dos animais para aquecer Seu filho. Ele viu a glória máxima da criação em cada animal calado, arquejante com suas dores, a lançar olhares de compaixão e de piedade aos desumanos humanos.
Nesses campos, meu Deus, agora tão diminutos, há um nascer da paz que Jesus nos trouxe no natal. Uma paz feita de calma, de harmonia, de brisas suaves, de encantos pequenos, minúsculas flores molhadas pelo sereno; frutos das árvores grosseiras, tortas, empenadas pelo peso do destino.
Mudez tão perfeita a sentir o vento com suas linguagens, ao sussurro das chuvas e ao balançar dos galhos a comunicarem coisas belas e inaudíveis. Para que o som, se Deus escuta o sereno coração das árvores?
Tudo isso faz sereno o meu coração e sossega os meus passos nas sombras que se derramam sobre a estrada. Tudo se move com sentido e com significado. Eu - parte pequenina de tudo isso. Na casca rugosa do pau terra, eu vejo Cristo e a confirmar o grande livro do mundo, canta uma seriema, três vezes!
Vejo que o natal é isto: paz derramada entre as formigas e os passarinhos no grande caminho da natureza que nos enseja momentos de luz.
Assim, eu sei que o Senhor é o candeeiro de meus passos nos caminhos tortuosos desse mundo. O Senhor é tropeiro, vaqueiro, carreiro que não abandona sua boiada e sua tropa, porque a poeira das estradas é sempre um renovado incenso vermelho elevado aos céus.
E todo esse universo é uma criação de Deus para que caminhos sejam abertos aos novos pés que irão pisar o cansaço dessa milenar poeira que somos nós e que vamos do chão ao chão, novamente, incessantemente, pisados pelas patas dos bois cansados da lida no campo. E saber-me terra; sei também que, com o meu Senhor candeeiro, nada me faltará.
Ouço o som dos galos nos crepúsculos dormentes e nessa canção dolente que acorda cada dia, eu penso em Ti, meu Senhor candeeiro. Derrama Teus olhos diáfanos sobre nossa vida e dá-nos o entendimento de todos os Teus desígnios. Derrama Tuas mãos benfazejas de bênçãos sobre todos nós, que trilhamos essa estrada de incertezas; dá conformação ao coração inquietante que carregamos na gaiola do peito e protege com Tua luz os solitários agonizantes nos leitos brancos de dores.
Sustenta-me Senhor Candeeiro, na etérea balaustrada em que docemente me sustento para não desabar sobre o precipício da dúvida e deixa que eu incline meus olhos para ver o infinito de Tua bondade sobre mim nas muitas alegrias que teces em meu caminho todos os dias. E tudo isso ocorre porque docemente algo em nós é maior do que a expansão da própria vida. Algo dentro de nós, meu Senhor candeeiro, clama e chora, dentro das ausências definitivas nos corredores infinitos da memória.
Algo dentro de nós é somente emoção tecida a cada hora na doçura atenuada no extinguir de cada instante. Sim, eu sei meu Senhor, que há um desenho imaginário que um belo pássaro, nas tardes bem goianas vai tecendo no vento e criando formas na tessitura emotiva de meus sonhos. É o meu desejo pungente de estar derramado um pouco em cada parte ínfima desse universo, nas flores orvalhadas, nas águas dos regatos, nas serranias goianas ou na solidão de uma aroeira no campo.
Talvez haja eternidade. Tudo é talvez meu Senhor candeeiro, nesses caminhos, nessas veredas que Tu vais abrindo pressuroso aos meus passos a cada volta da estrada poeirenta. Por isso eu quero ser irmão do vento, filho do dia e do sol e pai de todas as nascentes de águas cantantes. Venho de longe e para longe vou e quero buscar no chão, os sinais do meu caminho. Por isso escutem todos essa quase tardia canção, como murmúrio de mim mesmo nas serenas e doces eternidades que criamos a cada instante.
Leva-me Senhor candeeiro, leva-me para que meus olhos se debrucem nesses campos, nessas árvores, nessas florzinhas miúdas do caminho; a enfeitarem as voltas da estrada, marcada pelas patas desses bois pesados do passado que arrastamos em nós. Quero descansar à sombra das nuvens fugidias desse céu goiano e na alvura desse luar tão claro quero me deter e pensar em Ti, meu guia.
Busco, no equilíbrio do silêncio, todos os tempos imemoriais antes que o sol levante e traga novos rancores. E nesse silêncio de comovida prece eu quero estar na alma de tudo que tudo tem vida: nessas pedras faiscantes ao sol, nesses bichos que perambulam abandonados, nas árvores balançantes ao sabor das brisas e nessas águas revoltas pelas chuvas de dezembro.
Pensei, meu Senhor candeeiro, medir antigas palavras e recomeçar outras novas. Calei-me no profundo que o silêncio traz de murmúrios inaudíveis de tantas eternidades. E, assim, as minhas mãos aguardam um amanhã definitivo e único, que lance luzes às sombras da noite dos medos e desencantos. Dá-me, Senhor, um coração e olhos translúcidos de luar.
Quero a cada dia desse novo ano um lugar onde eu deite a minha fadiga e que diga às minhas dores que não doam tanto. Assim, permite meu Senhor candeeiro, que eu feche meus olhos e não escute senão os acalantos.
Que belo caminho Tu me mostras, Meu Senhor candeeiro! Há aqui e ali pássaros que, alegres e fagueiros, brincam à sombra das caraíbas e pelas curvas dos caminhos; nas rebaixas de serras há cheiro de capim e, ao longe, já diviso uma roça de arroz verdinho, que brinca à brisa dessa manhã de dezembro. Que belo cenário na descoberta da infinitude das coisas passageiras e da efemeridade das coisas definitivas...
Desconhecida e transitória a vida e, nessa lida, buscamos apenas. Infinitos caminhos se abrem em vereda de buritis murmurejantes de periquitos e busco no horizonte de fogo, a cada entardecer a Tua presença, ao guiar meu carro de boi pesado,
nas infinitas distâncias que trago em mim. Sim, meu Senhor candeeiro, os pássaros voaram agora para os céus em bando e eu aqui, sozinho, com ânsias do infinito fico aflito entre os ventos taciturnos... pensando...
Estrelas desfolhadas na tarde do tempo trazem enlevo de canções que carrego comigo na matulagem dos sentimentos escondidos. No ermo da tarde, o sol vermelho coa-se entre as pautas musicais dos arames das cercas da mata onde escondemos flores misteriosas que somente nós sentimos o aroma adocicado de comovidas lembranças.
Adormeço meu Senhor Candeeiro dentro do carro de bois da memória sempre perdida e acordo desse doce sonho para a labuta do dia, pois nesse mundo sem correspondências, já quase ninguém fala de ausências. E assim eu falo mudamente com as árvores caladas e reticentes, perdidas nos imensos cerrados. No seu ouvir não há uma queixa, nem mágoa porque sabem do seu destino.
Vejo o galope certeiro dos dias na pressa da definitiva chegada. Esquiva e distante está a estrela da felicidade, tão fugidia, tão tardia, perdida no cipoal das incompreensões e desencantos no laço azul da noite impressentida, como um luar triste de romance. E esta mesma estrela – Jesus – nascerá, eu sei, em nosso coração, num natal que carregamos e que jamais morrerá enquanto vicejar o canteiro do amor e da saudade.
Mas, como uma alegria renovada, eu sei, há pela magia de Deus, um alarido de maritacas no roi-roi dos cocos de guariroba. Há algo novo no tempo, com a barrinha do dia que vem surgindo, vermelha, no horizonte.
Nos sacavões e nas grotas, nas chapadas e campinas goianas, há incontida ternura. Esse tempo que corre rápido como água ligeira na bica de aroeira ensina-nos a incerteza dos caminhos poeirentos, ziguezagueando no mistério do sertão envolto em solidão, a mesma “sozinhez” que envolve, doridamente, o coração dos homens.
Nos rumores dos leques abertos das palmeiras são compostas nênias de saudades. É o sentimento tão forte no coração, na alma enternecida, sentimento esse fortemente arraigado como a tabatinga dormindo amarela no barranco do rio. E a nossa alma a quedar-se pelo peso da grande verdade, é tal assa-peixe a inclinar seu florão; sol a morrer lentamente no céu cor rosa; balanço azul-violeta da flor da lobeira e o curvar do pau terra sob o jugo de lembranças doridas.
É dezembro... E no barulho da chuva criadeira caindo, a grande mensagem vem surgindo de um caminho tão perfeito e luminoso que o homem não pode entender. Há procissão verde clara de sangra d’águas nos brejos, há velames balançantes com suas folhinhas prateadas, douradinhas e lixeiras a comporem o cenário, sucupiras bailarinas com suas folhas ao sabor dos ventos que correm livres no cerradinho, na solidão perene da paisagem verde.
No tamboril das matas, a abrigar ninhos de guaches balançantes, perpassa a brisa anunciadora: Há algo novo! Na beleza silente, a rolinha arrulha: “fogo – pagou, fogo – pagou”, nas copas das grandes cajazeiras. O tilintar do polaco no pescoço da vaquinha solta na capoeira, é um anúncio longínquo avisando que Ele vem chegando!
Joaninhas faceiras, novidadeiras trazem recado de cada moita de mamacadela. Carregam o perfume da flor de São José e da seiva da aroeira, trazem mel de jataí e a linda lembrança: que Ele já está aí...
É dezembro; que se reúnam tropeiros, boiadeiros, vaqueiros, meeiros, peões, gente da lida. Tragam a arroz pilado, feijão na munha, o cuité com toicinho, a carne de lata, a cuia de farinha, o alho socado com sal, uma penquinha de jurubeba, café moído, açúcar de fôrma, verdurinhas da horta, polvilho, queijo curado e ovo de angola para grande festa do advento.
Tragam, todos, os que têm fé, o cutelo, o machado, a enxada, a foice, o enxadão, abrindo trieiro para que a Sagrada Família faça morada no meio do mato, junto do povo de botina amarela e pé no chão, lenço e chapéu na cabeça, mãos grosseiras sempre postas na benção da plantação.
Os rendados de São Caetano nas cercas de arames abaixarão contritos quando Ele passar. Passo-pretos nas sobras da roça de arroz ficarão estáticos a observarem; a correição de formigas lava-pé, no trieiro da matinha, abrirá passagem. O pé de cabaça recolherá seus muitos ramos, ao abrir caminho para o pisado suave dos que O trazem.
Ele vem nas sombras dos angicos e carobas de um verde admirável. O pequi carregado de flores deixará cair uma chuva amarela sobre a sagrada Família caminhante.
A cagaiteira balançará seus galhos na incontida alegria da passagem. Debaixo do pé de Maria pobre, uma parada para o descanso na brisa alegre do dia que começa, quando se vê o bálsamo, a garapa e a caraíba livres no cerrado. A sombra do jatobazeiro derrama desenho no verde da postagem; tudo anuncia, tudo festeja, porque o Menino Santo evém vindo, nos braços da Maria, dormindo!
Como o responso compungido: “Jesus na frente, paz na guia, como o poder de Deus e da virgem Maria”, a natureza se abre pressurosa: jaburus cismando junto às coivaras e galhadas caídas, estremecem de júbilo. Perto das cabeceiras das aguadas, um urutau pia, a levar seu som para o seio profundo da mata, no aviso aos mais distantes. Curicacas agitadas avisam que Ele chega e até o velho cavalo de arado, nas suas tantas pisaduras, oferece humildemente a Ele, o doso magro.
Cheiros e ruídos expressam a novidade. O trovão lá no rumorão da chuva a cobrir a serra dá o seu sinal. Uma brisa reanimadora balança os galhos e os frutos avermelhados do xixá; uma curriola madura cai do galho, sobre a mesa do carro de boi parado, na espera de mais um dia na lida do engenho.
O João de barro observa a passagem Dele enquanto amassa, na lama do rego d’água, o cimento de sua casinha, e, mesmo a galinha carijó, a ciscar o lixo varrido do grande terreiro, anuncia a importante passagem, selecionado sementinhas para a esgabilança dos pintinhos assanhados.
Uma força nasce da terra cultivada, revirada, lombada, arada, vermelha. Quiabo nasce, mandioca cacau aponta suas folhas, o milho abre esporas para o sustento da sua caninha, feijão enrama, jiló é todo enfeitado de pequenos frutos verdes, quais brinquinhos de esmeralda, abobreiras alastram seus ramos, colhidos para o refogado de cambuquira.
E tudo se esparrama: melancia com suas bolinhas rajadas aqui e ali no meio do arrozal, o feijão brabo na largueza do chão parado, maxixe derrama pela roça os seus frutinhos estrepentos e, no estaleiro do chuchu, bracinhos vão se alongando
preguiçosamente na festa permanente da vida, como a esperança que acalentamos e vamos estendendo ao longo da jornada...
Ele chegou! Acendam a fornalha comas toras de angico, ajuntem sabugos, cascas e gravetos para o começo do fogo. Tragam candeias e lamparinas, luzes de pirilampos.
Varram o chão batido do rancho e encham o pote com água de ternura. Jesus menino chegou à casa de pau a pique e encheu de luz as gretas das lascas de aroeira.
Deitem o Menino Santo na cama de forquilha, na maciez do colchão de capim mumbeca. Repousem sua cabecinha no travesseiro da paina da barriguda e o aqueçam com uma coberta de algodão, tecida em casa, depois de um chazinho de poejo.
E ao coaxar da saparia lá no brejo, ao piado das cobras no cupinzeiro do pasto e do crocitar das corujas no cruzeiro da entrada, Ele dorme. Entre o murmurejo da água da bica, o batido do monjolo, o bufado dos bezerros no pastinho da porta da sala e as muitas luzes de estrelas o Menino Santo ressona...
E na manhã radiante, da cor do diamante, como todas as manhãs do mundo, ao som da bicharada alvissareira, Ele segue caminho. José, ao lado de Maria, tem a tiracolo uma capanga de sementes que vai jogando, semeando, espalhando. Eles seguiram as estradas, às vezes de dores, rumo à estrela do sonho, assim como o fizeram, antes, os emblemáticos Reis Magos caboclos, com suas enxadas sujas de terra!
E vão pelo cerrado, inseridos em uma manhã de luz, com perfumes mágicos de alecrim, manjerona e arnica semeando paz. É dezembro, é natal; vamos semear o bem, nós também.
Amém!
(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, especialista em Literatura pela UFG, mestre em Literatura pela UFG, mestre em Geografia pela UFG. Doutor em Geografia pela UFG, pós-doutorando em Geografia pela USP, professor, poeta. bentofleury@hotmail.com)