“Os cínicos costumam se esconder por trás da maldade do mundo para dar asas à própria perversão. No entanto, os atos alheios nunca justificam os nossos”
(Friedrich Nietzsche)
Quem luta contra monstros deve ter cuidado para não se transformar em um deles, diz o discurso à boca pequena que conta da forma corporal (des) humana, entalhada à sombra da luz divina. A fala denuncia, faz tempo, a trilha e história de homens em guerra cotidiana, milenar. Assim, os anjos do bem, também os do mal – travestidos em carne e sangue, ódio e poder – tomam do diapasão da magia para bocejar uma língua ininteligível à matéria assoprada em espírito. O esqueleto se move a ferro e fogo, óleo de uma sociedade perdida na (des) inteligência alienada a refletir sua imagem no espelho das ilusões. Revestida na ambição de passos pequenos, escorada nas muletas da mentira, a realidade manipula, enfeitiça com a promessa do consumo que alivia a dor da existência. “O que fala em línguas estranhas edifica-se a si mesmo, mas o que profetiza edifica a igreja. E eu quero que todos vós faleis em línguas estranhas; muito mais que profetizeis [...]” (I Coríntios, 14:4-5). As manchetes midiáticas avisam de um mundo volátil e liquefeito, a escorrer em sangue “e seca”, malcheiroso e antigo, envolto em alta modernidade. As beatas de Nietzsche avisam, abençoadas, e da janela do confessionário, que é preciso vigiar, o que significa ficar atento, estar vigilante porque o diabo anda sempre procurando maneiras de destruir o homem (Pedro, 1: 5-8).
Há pelo cosmos, em especial, no átomo chamado planeta Terra, mascates da virtuosa lei natural que tem gênese na onipotência. São os falsos profetas, salvadores das pátrias, pescadores de homens e almas, o que incita ao diálogo entre o feitiço do mal e a verdade de pensadores. Em meio ao diabo, os profetas da mentira capitalista usam e abusam da virtuosa fonte de luz, energia e ideias – o sagrado embebido no numinoso – tornado comércio. A fé barata importuna ao insistir em si mesma a caber entre as quatro paredes e milhões de pecados da mentira dos templos. Da onda não escapa sequer o mago, lembrando que “o mago não tem necessidade de se unir aos colegas, é antes de tudo um solitário, longe de procurar a sociedade, ele foge dela” (Émile Durkheim). “Por favor, permita-me apresentar-me, sou um homem de riqueza e gosto”. A riqueza pós-moderna exige poder de compra em detrimento da intelectualidade, humanidade e humildade de caráter. Na obra “Os Pensadores”, Marx alerta: “Mas o consumo é também mediador da produção ao criar para os produtos, o sujeito, para o qual são produtos. O produto recebe seu acabamento final no consumo” (1991, p. 9).
O que o filósofo alemão Marx deixa de mencionar, e para o quê o senso comum não acorda, é que a febre de consumo – efêmera e em progressão geométrica – representa um mundo virtual e louco, na realidade, uma espiral de fetiches chamada modernidade a aliviar suas dores a débito e/ou crédito. Para os pecadores do terceiro escalão instalados na base da pirâmide social, os carnês com eternas prestações não cabem no bolso, mas lavam a alma. Estive por aqui e ali por um longo e longo tempo, roubei a alma de muitos homens para desperdiçar. Mas o “que sabe aquele que não foi tentado?” Os sábios, em sua plenitude e fome de justiça, avisam que “o homem enganado abundará em sagacidade” (Eclesiástico, 34: 11). E eu estava presente quando Jesus Cristo teve seu momento de dúvida e dor. Tenham a certeza de que Pilatos lavou as mãos e selou seu destino e fé. A afirmativa mira o que a Sociologia classifica enquanto poder simbólico e atores sociais.
O prefeito da província romana da Judeia, no ano 26 d.C, Pôncio Pilatos - impõe legitimidade de reconhecimento do território por meio da objetivação das representações do mundo social e da produção cultural ou ideológica, segundo Bourdieu (1989). A língua, dialeto ou sotaque são objetos de representações mentais que, juntamente com a cultura, constituem o poder simbólico, e este, por sua vez, permite a criação do imaginário social. No “Evangelho de Mateus”, Pilatos pergunta: “’Que farei então de Jesus, que é chamado Cristo?’ Todos responderam: ‘Seja crucificado!’ O governador tornou a perguntar: ‘Mas que mal fez ele?’ E gritavam ainda mais forte: ‘Seja crucificado!’. Pilatos viu que nada adiantava, mas que, ao contrário, o tumulto crescia. Fez com que lhe trouxessem água, lavou as mãos diante do povo e disse: ‘Sou inocente do sangue deste homem. Isso é lá convosco!’. E todo povo respondeu: ‘Caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos!’. Libertou então Barrabás, mandou açoitar Jesus e lho entregou para ser crucificado” (27: 22-26).
Na procura dos critérios objetivos de identidade regional ou territorial, de acordo com Bourdieu: “Não se deve esquecer que, na prática social, estes critérios (a língua, o dialeto ou o sotaque) são objetos de representação mental dos atos de percepção, apreciação, conhecimento e reconhecimento. Deve-se também, considerar as representações objetais em coisas (emblemas, bandeiras, insígnias, templos, a própria natureza, dentre outros) em que os atores sociais investem os seus interesses ou estratégias interessadas de manipulação simbólica, que têm em vista, determinar a representação mental para a busca do imaginário social objetivado” (1989). Prazer em conhecê-lo, eu espero que adivinhe meu nome. Pós-moderno e certo de sua infalibilidade, o homem eletrônico e atordoado pela velocidade do Smartphone busca o orgasmo na selfie da aparência, num gole de vodka adocicada a prozac, na impossibilidade da realidade a escorrer por entre os dedos das mãos, qual afago de mentiras mal contadas, escondidas uma na sombra da outra.
O trapaceiro torna-se carrasco de si mesmo, engana no aceno ao velho e quebrado espelho da alma. A mão mais amena entrega-se, aos poucos, a atos sublimes. Dura e impositiva, a outra, orgulhosa de sua mesquinhez, sonega a própria sombra ao esconder que “Deus criou o homem da terra, formou-o segundo a sua própria imagem; e o fez de novo voltar à terra. Revestiu-o de força segundo a sua natureza; determinou-lhe uma época e um número de dias. Deu-lhe domínio sobre tudo que está na terra. Fê-lo temido por todos os seres vivos, fê-lo senhor dos animais e dos pássaros. De sua própria substância, deu-lhe uma própria companheira semelhante a ele, com inteligência, língua, olhos e ouvidos, e juízo para pensar; cumulou-os de saber e inteligência. Criou neles a ciência do espírito, encheu-lhes o coração de sabedoria, e mostrou-lhes o bem e o mal” (Eclesiástico, 17:1-6).
Mas o que está incomodando você é a natureza do meu jogo. Você que se esquece de que enquanto pingar uma gota filosófica seja ela de lágrima, paciência, sabedoria, na cor do sangue, o oceano das imbecilidades capitalistas globalizadas insistirá em afogar o mundo dos normais. A responsabilidade conclama às chances de um amanhã melhor a partir da certeza do apocalipse: “Eu vi a Fera e os reis da terra com seus exércitos reunidos para fazer guerra ao Cavaleiro e ao seu exército. Mas a Fera foi presa e com ela o falso profeta, que realiza prodígios sob o seu controle, com os quais seduzira aqueles que tinham recebido o sinal da Fera e se tinham prostrado diante de sua imagem. Ambos foram lançados vivos no lago de fogo sulfuroso” (19: 19-20). Eu fiquei preso em São Petersburgo, quando vi que era tempo para uma mudança. Mudanças essas de mudança na política tradicional a perpetuar mortos vivos eternizados no poder. A moral urge beber da dignidade, sabedoria e ética a ensinar que "a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos" (MARX, 1978, p. 271).
Matei o czar e seus ministros, quando Anastásia gritou em vão. Para estar vivo significa estar tentando sempre, a luta pela sobrevivência exige-nos o estar caminhando em meio às dificuldades. É um estar fazendo as coisas, e sem a menor inocência. A convivência diária transforma anjos em lobos, amigos e inimigos, irmandade em guerra, língua em estilete. “Os inocentes estão esperando enquanto aproveitam para curtir bastante conformismo disfarçado em lamúrias, ataques apocalípticos e desespero sem fim” (Os últimos dias de Paupéria, p. 24). Montei um tanque e retive o ranking do general, quando o blitzkrieg ficou furioso enquanto os corpos sentiram fome. “Aquele que oferece um sacrifício arrancado com o dinheiro dos pobres, é como o que degola o filho aos olhos do pai. O pão dos indigentes é a vida dos pobres; aquele que lho tira é um homicida. Quem tira de um homem o pão de seu trabalho é como o assassino de seu próximo. O que derrama o sangue e o que usa de fraude no pagamento de um operário são irmãos: um constrói, o outro destrói. O que lhes resta senão a fadiga?” (Eclesiástico, 34: 24-28)
Prazer em conhecê-lo, eu espero que adivinhe meu nome. Por falar em nome, quem sabe da identidade dos homens escondidos, torturados e mortos pelo sistema jurídico-policialesco - da sociedade assustada - no sistema panóptipo erguido a ferro, concreto e dor conhecido por presídio? Como afirma Foucault, “o corpo é a melhor arena para que se apliquem todos os castigos”. No presídio, entre 1969 e 1973, em carta escrita a uma irmã provincial superiora das salesianas - que proibiu irmã Yolanda Ladeira de visitar suas celas - Frei Beto, preso político da ditadura civil e militar, desabafa: “Certas experiências de vida parecem neutralizar a nossa sensibilidade. No início da prisão, não conseguíamos dormir quando a noite era povoada pelos gritos daqueles que sentiam na carne as mesmas dores que Jesus experimentou na Sexta-Feira Santa” (2008, p. 217).
O que está intrigando você? É a natureza do meu jogo? Oh, sim! A dúvida é fiel da balança humana, dorme e amanhece na cama da razão e da certeza. A Filosofia atesta que a razão é fruto da verdade, luz natural. Se o homem é um ser racional, sua vontade também o é, numa realidade que opera de acordo com as relações causais, na guerra ou na paz, em um mundo onde: “A ruptura revolucionária não saberia se concluir com o ato insurrecional que oferece o poder político ao proletariado. Pois o povo não quer uma sociedade nova, mas uma sociedade impossível, sem outro laço que a igualdade diante do solo e da máquina” (A Lógica dos Orientais, 1983, p. 103). Eu assisti a tudo com alegria enquanto seus reis e rainhas lutaram por dez décadas. Dessa maneira, defrontamo-nos com o território vivo, vivendo. Nele, devemos considerar os fixos, isto é, o que é imóvel, e os fluxos, isto é, o que é móvel. Os fixos são, geralmente, constituintes da ordem pública ou social, enquanto os fluxos são formados por elementos públicos e privados, em proporções que variam segundo países, na medida em que estes são mais ou menos abertos às teses privatistas: “O território revela também as ações passadas e presentes, mas já congeladas nos objetos, e as ações presentes constituídas em ações” (SANTOS, et al, 2001, p. 247).
O território é, assim, efeito material da luta de classes travada pela sociedade na produção de sua existência. Em meio a deuses e súditos, santos e pecadores, diabos e senhores feudais, pompa e crachás, a sociedade capitalista está assentada em três classes sociais fundamentais que são o proletariado, a burguesia e proprietários de terra. Para... “que caiam mil homens à tua esquerda e dez mil à tua direita: tu não serás atingido” (Salmos, 90: 7)
E o pulso, ainda pulsa!
(Antônio Lopes, escritor, filósofo, professor universitário, mestre em Serviço Social e doutorando em Ciências da Religião/PUC-Goiás, mestrando em Direitos Humanos/UFG)