A atenção integral à saúde é um dos princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS). Diz respeito às ações direcionadas à consolidação da saúde como direito e como serviço, envolvendo o ato de cuidar das pessoas por meio de ações abrangentes, sem se ater a uma assistência meramente curativa. Sua efetividade depende da atuação dos profissionais de saúde em equipes multiprofissionais e interdisciplinares, com reconhecimento do usuário como um sujeito biopsicossocial.
Parece um conceito simples, porém muitas vezes a prática não perpassa a teoria dessa diretriz. Observa-se a existência de um confronto entre a integralidade do cuidado e o modelo hegemônico do sistema, onde se predominam as práticas assistencialistas, puramente curativas e centradas no modelo biomédico. Assim, mesmo após 30 anos de SUS, dar respostas integrais à diversidade das necessidades de saúde de pessoas e coletividades ainda apresenta-se como um grande desafio da saúde pública.
Neste sentido, a Educação Permanente em Saúde (EPS) surge como um potencial dispositivo criador de movimento no interior dos serviços para produzir vetores rumo à integralidade. Ela coloca em análise as vertentes relacionadas ao trabalho (normas técnicas e protocolos de cada profissão) e as relações que se estabelecem na cena do cuidado (interação profissional-paciente).
Considerando que o cuidado integral à saúde requer o rompimento na formação profissional de identidades isoladas, a EPS estabelece um olhar questionador, que nos faz pensar e agir “fora da caixa”, à luz da conexão dos saberes com o cotidiano do trabalho. Refletir sobre a própria prática desenvolve o pensamento crítico, reflexivo e criativo, gerando espaço para se avançar em ações profissionais adequadas ao cuidado integral.
E aqui não estou falando em qualificação/capacitação articulada com a progressão da carreira individual dos profissionais, mas me refiro a um processo educativo que (re)constrói e transforma as práticas profissionais, indo além da atualização técnica. Não que esta última não seja relevante, mas é a EPS que preenche as lacunas que afastam nossas práticas da atenção integral à saúde. Podemos dizer que a EPS aproxima a formação dos profissionais de saúde com as reais necessidades dos usuários e do sistema, fortalecendo as formas de cuidado. Ela diminui o abismo entre usuários, servidores e gestores da saúde, fazendo com que a integralidade saia do papel e torne-se uma realidade nos serviços.
A EPS utiliza estratégias baseadas em metodologias ativas de ensino-aprendizagem, que colocam o sujeito como ator da construção de seu conhecimento, desenvolvendo uma postura científica e ao mesmo tempo crítica frente às situações-problemas vivenciadas no cotidiano de quem presta serviço na saúde. A proposta pedagógica da EPS traz, assim, a problematização em sua origem, desenvolvendo nos profissionais a capacidade de ensinar-aprender, buscando soluções criativas para os problemas locais, melhorando a qualidade do cuidado à saúde e humanizando o atendimento prestado à população.
Tem como premissa principal a construção ascendente das propostas de estudo, ou seja, a capacitação deve ocorrer de forma descentralizada, em todos os locais, a partir de cada realidade, envolvendo vários saberes e valorizando as experiências. Objetiva qualificar a própria prática, através de modelos de capacitação aderidos aos contextos de trabalho dos participantes.
Atravessar o trabalho com práticas de EPS significa assumir o compromisso de reinventar o trabalho para que possa produzir a integralidade. Só conseguiremos mudar a forma de cuidar em saúde se conseguirmos mudar também os modos de ensinar e aprender...
(Rafaela Julia Batista Veronezi, fisioterapeuta, doutora em Ciências Médicas pela Unicamp/SP, superintendente de Educação em Saúde e Trabalho para o SUS (SEST-SUS), Secretaria de Estado da Saúde de Goiás – SES-GO)