Após apresentar entusiasticamente cada um dos meus colegas e chegar ao professor Delfino, estou exultante. Trinta anos se passaram e ali está ele, ministrando novamente a aula da saudade para a nossa turma de Medicina. Começa comparando a infância e a velhice e nem notamos que somos mais velhos agora formados, do que ele quando nos ministrou a última aula. Ele tem oitenta anos, nós por volta de cinquenta e cinco.
Utiliza o plural majestático e lembro-me do meu amado Maranhão, terra da minha mãe. Ali inicia a lição de filosofia, onde cita Platão e Sócrates e os une – apesar dos cinquenta anos entre os filósofos – dizendo: “Muita informação deturpa a lição.” Nos recheia com citações em latim. Permeia tanto a semântica como a etimologia. Seu cabedal de conhecimentos é vasto, vastíssimo.
Olhando a plateia vejo todos embevecidos, com o gestual do velho mestre. Suas mãos em círculos, hora de braços cruzados. E sempre utilizando pensamentos encadeados e cita a primeira estrofe de Camões terceiro e quinto versos. “Por mares nunca dantes navegados” , “Mais do que prometia a força humana”. E quando quer reforçar algo que julga importante, diz: “– Cai na prova.”
Percebe-se claramente que a aula é de Poesia e Filosofia, se der tempo; um pouco de Histologia. Pois a vida não se interrompe, ela prossegue. E ninguém morre, apenas “voltou para casa”. São palavras dele, não minhas. Na verdade ele não está ensinando e sim insinuando.
Sua trajetória compara os tempos onde antes o que era aula, agora é encontro. O que era aluno, aprendiz. Professor virou tutor ou preceptor, e sala de aula é estação. Quadro negro é tablet. E somando tudo tem a PBL (aprendizado baseado em problema) que ele subverte deliciosamente e cria o DBL (aprendizado baseado em Delfino). Num só momento vem Platão “Só aprendemos o que sabemos quando dormimos.” E depois Rui Barbosa em “Oração aos Moços”. E fecha com Apologia de Sócrates que é um discurso de Platão.
Inundados que estamos de tanto saber, não percebemos que o discurso de Delfino é linear, quiçá rotatório. Ele vai e volta. Um madrugador intermitente, como diria Rui Barbosa. E agora cita seu método de ensino, onde só da presença do aluno ele dá nota dois. E exemplifica uma aluna que tirou zero pela caligrafia. Introduz-nos Reuven Feuerstein, um psicopedagogo e nos prova que as ideias estão aí. Basta usá-las. E que a habilidade se adquire. Nos incentiva a estudar mais, ler mais que possível aprender sempre.
Nesse momento estou totalmente tomado por sua verve e ela vai e declama Augusto dos Anjos, autor de livro único. Ao fazê-lo, estica as vogais. Coloca as mãos na cintura. Salta para o seu aluno mais velho do que ele, e também cita – en passant – um paciente com Síndrome de Down, formado em Matemática. Circula novamente e cita a biografia de Einstein “Eu não sou mais inteligente do que os outros, a diferença é que eu fico mais tempo no problema.”
Sabe que não precisa usar o data show, ele é o show! Perpassa por Confúcio e os Analectos, no capítulo sete onde fala sobre a transmissão, não invenção, do aprendizado. Shu Er, um dos primeiros textos que li quando aprendi mandarim. Disseca ainda mais o cérebro de Einstein e o trabalho de Marion Diamond, professora de Anatomia. E num salto faz várias citações sobre a saudades, “O posto amargo do infelizes.”
E finalmente fala sobre histologia, sua matéria curricular. Desenha, explica, tudo sobre a glia. Nos mostra como e o que comer. Ilustra a barreira hemato-encefálica. Ali percebemos que ele não consegue, ou melhor, não deseja terminar a aula. São mais de cento e vinte minutos de fala ininterrupta. Cita Pascal – meu matemático predileto – e junta com Guerra Junqueira “Um grão de trigo abriga uma alma infinita”. E diz que tudo está no átomo, até Cristo.
Vai desde a Cidadela de Saint Exupéry, um tratado publicado pós mortem. Até o Inferno de Dante: bene escolta chi la nota. E eu como devoto aluno, gravo tudo em minha memória. Agora faz digressões sobre a acetilcolina. Estou embasbacado.
A surrealidade toma conta de todos e não queremos que ele pare de falar, mas precisamos disso. Delfino entra então nos meandros de Gibran Khalil Gibran e fala sobre o trabalho. Os vários tipos de trabalho, a ver: por obrigação, que é o imediato e remunerado. Depois a ação, que é o que modifica o ambiente. E por último o serviço, que transforma o homem.
E sabemos que ele trabalha todos os dias, no mesmo local, ouvimos um pouco mais de sua longa e profícua biografia e ele diz então sobre o trabalho por equívoco, teoria de Thoreau, em Walden. “Fui para os bosques viver de livre vontade. Para sugar todo o tutano da vida…Para aniquilar tudo o que não era vida. E para, quando morrer, não descobrir que não vivi!”
E ali está nosso mestre que sempre trabalhou, aprendeu sozinho se conhecendo mais e mais, teve onze filhos naturais e nós: seus alunos e filhos medicinais.
(JB Alencastro, médico)