Miguel Angel Astúrias, prêmio Nobel de Literatura, escreveu magnífico livro inspirado na ditadura do presidente da Guatemala, Cabrera Estrada, um regime violento que vigorou há cerca de 100 anos. Deliciei-me com a sua leitura há pouco mais de 40 anos, quando vigorava em sua plenitude a ditadura brasileira inaugurada em 1964. Entre outros trechos marcantes de “O senhor Presidente”, este é o título da obra, gostei da descrição de uma conversa solitária de dois jovens, tarde da noite, acerca dos próprios sonhos, a começar por projetos profissionais, a carreira a seguir, enfim, um papo corriqueiro entre jovens. A certa altura um disse da própria pretensão de ingressar na Polícia Secreta, aconselhando o parceiro de conversa a seguir idêntico itinerário. “A secreta é a carreira do futuro”, argumentou. Naquela quadra da História brasileira a dica tinha sabor especial, eis que, idealizado pelo general Golbery do Couto e Silva, o sistema havia implantado, com nível de ministério, o Serviço Nacional de Informações, também chamado serviço nacional de intrigas, e a prova de que a chance para os que sonhavam alto passava pelo SNI pode ser comprovada pelo fato de o general João Batista Oliveira de Figueiredo, o ministro-chefe, ter usado o cargo como plataforma para chegar à presidência da República.
Não há que discutir quanto à importância, para qualquer regime, da posse da informação. Um fato bem presente no nosso cotidiano dá a dimensão dessa premissa. O presidente Michel Temer está às voltas com seu projeto de resgatar, retirando do fundo do poço ou da cadeia segundo palavras do ex-deputado Roberto Jeferson, a família deste, conforme declarou à imprensa o próprio presidente nacional do PTB. E a forma encontrada para esse resgate envolve a nomeação de uma filha do ex-parlamentar, a deputada federal Cristiane Brasil, para um ministério, no caso, o do Trabalho. Se Temer usasse a Agência Nacional de Informações (Abin), sucessora do SNI, para assessorar-se quanto à escolha de sua ministra, informando-se sobre o prontuário de Cristiane, poderia ter evitado o constrangimento de que está sendo vítima. No caso, de ações na justiça obstaculando a nomeação. Mas vítima? Sim, sei que posso ser questionado. Mas apresso-me em responder: não existe, na legislação brasileira, a figura do meio-prefeito, meio-governador ou do meio-presidente da República. É por isso que existe lei que prevê, por exemplo, a intervenção, pelo governador, em determinado município. Para que? É para que o interventor, investido 100 % nos poderes inerentes ao prefeito, ponha ordem na administração.
Se não existe a figura jurídica do meio-presidente da República, claro que Temer tem todo o direito de nomear ministros, recrutando-os entre os cidadãos e as cidadãs que estejam na plenitude dos direitos políticos. Para evitar desgastes como estes de que o governo Temer é recordista, devido aos vários ministros hoje atrás das grades, basta recorrer previamente, à secreta, ou melhor, à Abin. É para tarefas como essas que os governos tem serviços reservados, ou secretos de informações. Para que serve hoje a Abin? Deixar de ser o celeiro de carreiras promissoras é compreensível e até benfazejo. Mas para nada ser útil, aí já é demais.
Atualmente, o Poder Executivo vive um ciclo de desgastes. Aliás, nenhum dos três Poderes, nem mesmo o Ministério Público, pode gabar-se atualmente do pleno gozo da aceitação por parte da Sociedade. Executivo, Legislativo e Judiciário sofrem contestações. Os pecados são muito visíveis, estão expostos. Quando a presidente Dilma, tentando contar com o assessoramento político de Lula, nomeou o ex-presidente para um ministério, ela era a única pessoa que poderia nomeá-lo. Desgastada, viu sua iniciativa frustrada por sórdida trama que envolveu até a divulgação de gravações ilegais por respeitável magistrado. Estou falando de Sérgio Fernando Moro. Temer, vice-presidente de olho no lugar de Dilma, deveria ter protestado, porque ela poderia, e só ela, nomear Lula. Tanto que Temer, depois que assumiu, promoveu Moreira Franco a ministro para conferir foro privilegiado ao amigão do peito e poder continuar com a eficiente colaboração de Moreira Franco.
Mas os tempos são estranhos. Em especial para Temer e sua equipe. Todos imaginavam que, livrando-se do domínio petista, o País voltaria às facilidades de tempos idos e vividos. Puro engano. Falta legitimidade aos atuais detentores do poder. E por faltar-lhes legitimidade, não conseguirão aprovar, por exemplo, a reforma da Previdência. Pode até sair um arremedo de re-forma, mas não a reforma ou as reformas necessárias.
Porque isso não se faz em momentos de crise, de contestação, de falência moral. Ou melhor, de governo liderado por um meio-presidente.
(Valterli Guedes é advogado e jornalista)