Calais, é uma cidade com pouco mais de 70 mil habitantes, segundo censo de 2012. Está localizada na porção norte da França, junto ao Estreito de Dove, Canal da Mancha. Esse estreito divide França e Reino Unido. Por si só o estreito é uma barreira física aos migrantes, que atualmente em grande parte são refugiados ou solicitantes de refúgio, que desejam seguir para o Reino Unido. A condição de refugiado confere aos solicitantes um estatuto de tratamento internacional diferenciado com garantia de direitos básicos. Entretanto, o recrudescimento das políticas de migração da França, anunciadas pelo governo do Presidente liberal Emmanuel Macron, tem aumentado as adversidades e tensões enfrentadas por grupos de migrantes no país, especialmente para a categoria de refugiados. No último dia 16, Macron fez uma visita a Calais. A visita tem um peso simbólico pelo fato da cidade ter se tornado uma referência da crise dos migrantes na França e no mundo. Para alguns, a visita é ainda uma tentativa de abrandar entre outros grupos, aqueles ligados à direitos humanos, que tem feito fortes críticas às iniciativas de controle migratório.
A mídia internacional noticiou que durante a visita o presidente contra argumentou as acusações de abusos por parte das forças de segurança investidas nos migrantes e disse que casos de abuso serão investigados e punidos. Um discurso que muitos consideram vago se não forem efetivamente tomadas medidas para resolução da grave crise migratória no país, e que gera insegurança para grupos mais vulneráveis.
O drama emblemático vivido em Calais não é fato recente. Dois tratados podem ser elencados como parte marcante desta história. O Tratado de Sangatte (1991) em que a Grã-Bretanha, principalmente, pressionou a França a desmantelar um abrigo da Cruz Vermelha na região de Calais, considerada na época pelos britânicos como um “estoque de migrantes ilegais”. A decisão foi duramente criticada pelas entidades de direitos humanos na época. O Abrigo foi efetivamente desmantelado em 2002. Seu desmantelamento gerou consequências até hoje sentidas em cidades francesas – o deslocamento destes grupos, sem o devido apoio institucional.
Já o Tratado de Touquet (2003) reordenou num acordo bilateral entre Reino Unido e França as formas de controle de fronteiras, principalmente na região do Canal da Mancha e Mar do Norte. Esse Tratado envolve diversos aspectos, tais como controle sanitário,aduaneiro, entre outros. Contudo seu maior desafio é o controle de migrantes. Deste modo, o tratado criou um quadro legal em que os agentes britânicos e franceses justapõe suas ações numa zona de controle, evitando enclaves. Como grande parte do fluxo de migrantes em condições de solicitação de asilo/refúgio são da França (país de partida) para Reino Unido, o tratado coloca a França numa situação de assumir o braço policial da política de migração britânica, tendo inclusive que receber de volta, quando a França for o país de origem, migrantes negados por agentes do controle de fronteira, mesmo que já estejam em território britânico.
Longe de uma solução, o tratado de Sangatte (1991) e o Tratado de Touquet (2003) não impediram os fluxos de migrantes, que em grande parte estão deslocados de seus países por questões de guerras ou perseguições ( norte da África e Oriente Médio) e estão protegidos por pelo Princípio Internacional de Non-refoulement que garante proteção aos refugiados (em sua essência, esse principio garante que o Estado signatário não deve obrigar uma pessoa a retornar ao um território onde possa estar exposta à riscos como perseguição, por exemplo). Em tese, como esse princípio atingiu um valor normativo no direito internacional, os Estados signatários não devem violar tal norma.
Diante do desafio imposto aos franceses pelo constante fluxo migratório de pessoas em situação de alta vulnerabilidade, que por sua vez demandam resguardo de condições básicas de segurança. saúde, alimentação, entre outros, e a necessidade de honrar o Tratado de Touquet, em que a França assume boa parte da responsabilidade de controle de fronteira do Reino Unido, o presidente Macron anunciou durante a visita a cidade de Calais, que exigirá do governo britânico revisão do acordo, garantindo minimamente mais investimentos do governo britânico para controle de fronteira e auxílio às questões da crise migratória existente em território francês.
Com o processo do BREXIT drenando energia e recursos, o governo britânico já sinaliza fortes intenções de refutar revisões do referido Tratado. O encontro marcado para os próximos dias entre a primeira ministra Britânica e Macron, devem render pouquíssimos avanços em relação a uma melhoria significativa de investimentos para acolhimento dos refugiados nos dois países. Nesta briga de gigantes, quem ganha é a violência ora difusa, ora institucionalizada contra grupos vulneráveis de migrantes e refugiados. Quem perde somos todos nós, que vemos a construção de respaldo à vida e a dignidade serem colocados em xeque ou serem utilizados como moeda de troca nas rodadas de acordos internacionais.
(Patricia Martinelli, doutora em Geografia pela Unesp de Rio Claro/SP, docente da UNIFACCAMP)