O povo, não bastasse estar literalmente decepcionado com o tratamento que o Governo dá aos políticos e aos possuidores de grandes fortunas não explicadas, anda revoltado com o fato de ver apenas os menos aquinhoados sendo fisgados pela “malha fina” do imposto de renda.
Todos os anos, no primeiro trimestre, a Receita nos compele a declarar nossa renda, para que o Governo abocanhe sua polpuda parte, que já vem com um bom pedaço retido na fonte, e não nos dá a mínima oportunidade de contestar sua ilegalidade.
Sim: ilegalidade, pois salário, tecnicamente, não é renda. O termo “imposto de renda” é uma abreviação de “imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza”, o que acaba de confirmar a ilegalidade.
Renda, no conceito consagrado e sedimentado há mais de duzentos anos pelos economistas da escola clássica, é o que se tem quando um patrimônio é acrescido a partir de si mesmo – por exemplo, um imóvel do qual se extrai um aluguel, ações de uma empresa valorizadas por seu desempenho ou uma aplicação que o banco remunera pagando juros ao poupador.
No bojo desta discussão, que nunca foi agitada judicialmente para definir o caráter tributável de salários e proventos, vem mais uma ilegalidade: a tal “malha fina”, criada pela Receita para cobrar do contribuinte eventuais deslizes na sua declaração anual.
Quem nunca estranhou o fato de a Receita Federal vir atrás do contribuinte para explicar uma despesa médica, odontológica ou de instrução, muitas vezes omitida por mero esquecimento diante de seu insignificante valor? Vemos pobres aposentados debatendo-se para explicar uma omissão dessas, ficando a devolução do imposto retido, que tanta falta lhe faz, condicionada à satisfação daquela exigência.
Enquanto isso, vemos pessoas detentoras de verdadeiras fortunas desviadas do Erário, com sinais exteriores de riqueza, tudo totalmente incompatível com seus ganhos legais, não serem incomodadas pela zelosa Receita, que aferroa os pobres e assalariados atrás de um recibinho que busca pegar, pelo cruzamento de informações, não só o sonegador, mas também o médico ou o dentista por não terem declarado tal renda.
Por que tais pessoas, beneficiárias de um flagrante e conhecido enriquecimento ilícito, passam ao largo das investigações e totalmente despercebidas da Receita Federal?
Pois bem, a resposta a esta pergunta, que não está em qualquer norma do ministério da Fazenda, foi dada, talvez inadvertidamente, pelo presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), Kléber Cabral, que declarou que a Receita trabalha com uma “lista vip” (para quem não sabe, vip é a abreviatura inglesa de “very importante person”, ou “pessoa muito importante”).
Essa tal “lista vip”, segundo Kléber Cabral, conta hoje com mais de seis mil pessoas (6.052, para ser exato). Em doze meses, o número de pessoas que só podem ser investigadas após a autorização de algum chefe da Receita atingiu esses 6.052 nomes. No ano passado, eram cerca de 3.000. Nessa relação estão autoridades que ocupam ou ocuparam nos últimos cinco anos os cargos de deputado federal, senador, desembargador, presidente da República, ministro de Estado, dirigente de empresas estatais (como Petrobras, Caixa, Transpetro etc), reitores de instituições federais, entre outros. Elas são denominadas pessoas “politicamente expostas”.
Essas pessoas, segundo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Fazenda, devem ter um tratamento diferenciado, e a Receita decidiu, sem qualquer norma, estabelecer que elas não podem ter suas contas analisadas por nenhum auditor, sem prévia autorização. Se algum auditor encontrar qualquer sinal de irregularidade, não pode – como faz nas declarações do cidadão comum – investigar: ele tem que comunicar o fato reservadamente ao seu superior, que decidirá se a irregularidade deve ou não ser apurada. É mais ou menos como o foro privilegiado, quando só após o STF autorizar é que uma investigação pode ser iniciada.
Num momento em que o país vive sob a pressão de tirar os privilégios dos políticos – com projetos como o fim do foro privilegiado criminal para que sejam investigados na Justiça comum e não no Supremo –, uma outra lista vip só faz crescer dentro da Receita Federal. No último ano o órgão dobrou o número de cidadãos que possuem uma espécie de “foro privilegiado fiscal”.
Todas elas foram beneficiadas por algo que auditores fiscais identificaram ser uma distorção de uma regra que deveria servir para proteger os cofres públicos e aumentar a fiscalização das autoridades responsáveis por manejar recursos milionários. Com isso, procedimentos de investigações que poderiam ser antecipados pelos servidores da Receita, acabam sendo protelados e só ocorrem após outros órgãos, como a Polícia Federal ou o Ministério Público, iniciarem suas apurações. Foi exatamente o que ocorreu na Lava Jato. Diretores da Petrobras que já foram condenados na primeira instância, como Paulo Roberto Costa, Renato Duque, Sergio Machado e Nestor Cerveró, estavam entre essas pessoas protegidas pelas regras da Receita. Quantos bilhões deixaram de ser recolhidos ao Erário, por mera “ajeitadeira” do Governo para agasalhar situações de bandidos!
A Receita Federal, com as declarações do presidente da Unafisco, decidiu abrir processo no Conselho de Ética contra o auditor fiscal Kléber Cabral por ter tornado pública suposta tentativa de proteger contribuintes potencialmente propícios a cometer crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. A lista é composta, como dissemos, por políticos, magistrados, parlamentares, funcionários do alto escalão de empresas estatais e governantes. Segundo Kléber Cabral, a Receita estaria perseguindo os auditores fiscais que acessam dados de pessoas dessa lista, como forma de protegê-los, fato que ele sofre na própria pele. É o cúmulo o Governo perseguir e punir seus agentes por estarem querendo fazer a coisa certa, como o Judiciário, que, ao invés de incentivar, pune magistrados que ousam processar intocáveis políticos, empresários e outros protegidos.
A alegação do órgão corregedor da Receita é de que Cabral não foi “leal” à Receita e aos seus servidores ao divulgar questões que “desabonem a imagem da instituição”. Na notificação enviada a Cabral, a Comissão de Ética afirma que o servidor precisa ter “bom senso no uso da liberdade de expressão”.
As regras sobre a composição da lista de Pessoas Politicamente Expostas, denominadas PPE, foram criadas em 2013, no fim do governo Dilma, com objetivo de intensificar a avaliação sobre as informações fiscais de pessoas com posição estratégica no governo e nos órgãos e empresas de Estado. Entre eles, senadores, deputados, magistrados e governadores. Dos 108 políticos com direito a foro privilegiado da delação da Odebrecht na Lava Jato e que tiveram abertura de inquérito autorizada pelo ministro do STF?Edson Fachin, apenas 17 não estão na lista da Receita. A quem aproveita essa lista, para que o Governo fique intimidado e faça uma blindagem desta natureza?
Segundo a Unafisco, a Receita Federal vem utilizando justamente essa lista, organizada pelo Coaf, para alimentar o chamado Sistema Alerta, que denuncia aos altos escalões da Receita quando um auditor acessa os dados de integrantes dessa lista. Na visão dos auditores fiscais, tal prática consiste em uma “perseguição” de forma a proteger esses dados e consequentemente os integrantes da lista.
Está explicado como notórios larápios, que ontem eram reles assalariados, joões-ninguém, hoje são detentores de fortunas incalculáveis, sem que a Receita Federal os incomode.
O artigo 5º da Constituição Federal, que tem nada menos que 78 incisos para tentar mostrar que “todos são iguais perante a lei”, de repente foi modificada por esta “lista vip”, para decidir que alguns são mais iguais que os outros, introduzindo no nosso ordenamento jurídico uma norma não escrita, mas praticada, que, além de injusta, é imoral e inconstitucional.
Já se viu: a lei no Brasil não é para todos.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado, liberatopo[email protected])