No caso da queda do Airbus alemão, provocada pelo próprio piloto, há coisas a serem consideradas. Ele dissera à sua namorada – com que havia terminado – que seria lembrado pelo mundo.Ainda faria um grande gesto, que “mudaria o sistema”: a que sistema estaria aludindo?
Ao sistema capitalista, ou aos protocolos e procedimentos da aviação internacional? Na tragédia de que foi agente ativo e vítima, vemos que ele não apenas quis se destruir. Poderia tê-lo feito dando um tiro na cabeça, ou usando outro meio de auto-extermínio. Mas não, ele quis também destruir, levando outros a ter a morte horrível que ele teve.
Quis fazer, e fez um “gesto grandioso”, que será lembrado para sempre. Fez o gesto terrível mantendo a respiração tranquila, até o último instante. Não estava possuído por fúria, nem se achava em estado psicótico. Onde o humano deixa de ser humano, e passa a agir como um monstro?
Quando o ego quer afirmar-se, em crise de inflação (ou em treva de depressão) pode ser capaz de tudo. Pode afirmar-se na composição de um poema, uma música sublime, uma obra de arte perfeita. Assim como pode espetacularizar-se, inflar-se em atos abomináveis e hediondos. A depender da qualidade de ser, do talento, caráter e formação moral e ética de quem é por ele habitado.
Os debates e informações sobre a tragédia do Airbus alemão levaram psicólogos e pilotos a colocarem o caso de um filme argentino, no qual um piloto atira o avião sobre sua própria casa. Um ato carregado de simbolismo, que pode levar à indagação: o que o piloto suicida estaria a querer destruir? Alguma memória amarga, com a qual não pudesse mais conviver?
Talvez ele tenha querido enterrar, com seu gesto extremo, uma lembrança terrível. O programa Globo News Painel levou psicólogos e um piloto a discutir sobre o que leva cometer tal ato insano um ser humano, um profissional habilitado, ligado a uma cultura racional, e tendo sido treinado pela escola alemã de pilotos, a melhor do mundo?
Sabe-se ser esta uma profissão para a qual só entram as pessoas ardentemente vocacionadas. São duros os testes a que têm de ser seguidamente submetidos, mesmo depois de aprovados e no exercício da profissão. Porém há uma coisa a se considerar: um médico pode saber, pelo exame de sangue, que doença uma pessoa tem, ou poderá ter.
O que se poderia saber de uma criatura humana, a partir de seu passado, de sua tristeza e decepções, dos abismos de sua alma, das valas em que possa ter caído o seu espírito, dos labirintos em que esteja emaranhada a sua psique?
É menos prejudicial ter um descolamento da retina (como a que teve o piloto alemão) do que ter um descolamento da realidade.No caso dele isso foi trágico e fatal.
(Brasigóis Felício, escritor e jornalista. Ocupa a cadeira 25 da Academia Goiana de Letras)