Naquela manhã, o Rio Araguaia estava revolto. Eram os ventos tradicionais, naquela época do ano. No Rio, o banzeiro formava altas ondas, espumantes. Era como se fossem vários cordões, branco neve, de claro algodão, pronto para fiar. Era uma onda atrás da outra que chegava a causar instabilidade nas pequenas embarcações - batelões, canoas, ubás (barcos indígenas). Quando Você remava no sentido favorável ao vento, consequentemente, das ondas Você despendia menor esforço. O vento era um auxiliar bem-vindo. Mas quando Você, pelo destino da viagem, tinha que remar em sentido contrário àquele vento, embora já setembrino, mas ainda de muita força e velocidade, o dispêndio de energia para fazer o barco deslanchar e se equilibrar, era bem maior. Naqueles idos, ainda tinha no meio do Rio, os ‘baixios’. As chuvas ainda não tinham sido suficientes para avolumar as águas daquele rio largo, porém raso. Naqueles ‘baixios’, a gente descia do barco, a água era ainda muito rasa, e se dava uma ligeira manutenção naquelas minúsculas embarcações, - tirava-se a água de dentro da canoa. Não que o ‘casco’ estivesse danificado. Não. É porque, quando o Rio estava agitado, aquelas ondas jogavam muita água para dentro da canoa. Principalmente, quando a gente estava remando em sentido contrário ao vento e às ondas. O sol, naquela manhã, já era causticante. E ainda não era meio-dia. Um grupo de amigos e irmãos resolvemos vir à cidade de Couto de Magalhães apanhar mangas. As ruas daquela cidade eram bem plantadas dessas mangueiras, que, para nós, era um deleite. Mesmo em se tratando de mangas comuns, e que, naquela região, eram muito doces, e pelo sol abrasador, ficavam vermelhinhas como uma pimenta malagueta. E nós até dizíamos: ‘Aquelas lá estão uma ‘pimentinha’.
E aquele dia era um domingo ensolarado.
Saímos em duas pequenas embarcações: Uma maior, o batelão, e outra menor, uma canoa.
No batelão, estávamos eu, a Lourdes, a Vivi, a Terezinha e o Isaías. Este, o piloto, como dizíamos, estava no ‘Jacumã’. Alguns de nós ajudávamos com nossos remos. Mas não eram muitos. Na canoa, que era pilotada pelo Zezinho, irmão da minha Madrasta, viajavam Lêda e outras pessoas, cujos nomes não me vem à memória.
Eu só sei dizer, pelas minhas lembranças revigoradas pelas da Lourdes, a mais velha e de melhor memória, que, ao se aproximar do outro lado do Rio, nosso destino, talvez a uma distância de uns 200 metros, as ondas aumentaram de altura e de intensidade, e mais próximas umas das outras. Já havia entrado tanta água que não estávamos tendo condições de esvaziar a canoa. Entrava mais água do que a quantidade que tirávamos. Consequentemente, o volume d’água sempre aumentava, e a embarcação tinha sua capacidade de peso ultrapassada. A consequência funesta era previsível, àquela altura. O batelão afundaria, como de fato afundou.
Quem estava na canoa, o piloto deixou-os em terra firme e veio, imediatamente, nos socorrer. As outras pessoas que estavam no largo (ainda não era praça), em frente, se aglomeraram à margem do Rio - uns para ver, outros para colaborar no resgate dos náufragos. É claro que todos queriam ajudar, mas isto era praticamente impossível. Primeiro, não precisava de tanta gente, naquela ocorrência de pequena monta, e não tinha embarcação para todos.
É importante esclarecer por que tanta gente se aglomerou às margens do Rio, se a cidade era tão pequena. É que aquele dia era um domingo! Todos estavam saindo da Missa, e ainda estavam às sombras das belas mangueiras, conversando, animadamente, sem jamais suspeitarem, como natural, que daí a pouco iriam testemunhar um acontecimento, que, por pouco, não fosse a solidariedade daquela gente bondosa, poderia ter-se transformado numa fatalidade. Enquanto a nossa canoínha ia levar os seus passageiros à terra e voltar para ajudar no socorro aos náufragos, já vinha uma pequena canoa com alguns voluntários para ajudar naquela empreitada. Entre aqueles, se encontrava um bêbado. A Lourdes lembra-se, muito bem, de seu comportamento. Ele dizia e repetiu, por várias vezes: “O diabo, quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece”. E tentava ajudar no resgate dos náufragos, e repetia, por várias vezes, aquele refrão. Em outras circunstâncias, esse seu comportamento seria motivo de riso. Porém, naquele momento, o que todos queriam era a solidariedade de todos, inclusive daquele ‘bendito ébrio’.
E vejam o comportamento de uma pessoa de bom coração! Embora completamente ébrio, ele não perdeu o sentido da solidariedade. E foi até muito útil. Pelo seu estado de embriaguez, não tinha a menor idéia do risco que ele, naquele momento, também estava correndo. Caso caísse n’água, era mais um a precisar de socorro urgente. Caso contrário, se afogaria, pois não tinha as mínimas condições de se salvar. Ainda era o final da manhã, e ele já havia bebido ‘todas’ a que teria direito. A Lourdes, que conduzia as roupas de nosso piloto, que ficara só de calção para não molhar a roupa que usaria ao desembarcar na cidade, abraçava aquela indumentária e demais objetos e afundava. Ia até o fundo, e lá batia os pés em solo firme, e subia à flor d’água, e se agarrava ao barco, que, devagarinho, ia descendo, pois, ali, como natural, num rio, a água não é parada, tem correnteza, mesmo que pouca. E assim, ela fez por várias vezes, e sempre agarrada àqueles objetos, que, pela sua responsabilidade, ela não podia deixar que as águas levassem. Tinha a responsabilidade de entregá-los ao dono, mesmo que totalmente encharcados. Depois de várias tentativas, entre ‘afunda’ e ‘emerge’, conseguiu se segurar ao casco da canoa emborcada.
A Vivi, que dizia ser uma boa nadadora, era eu colocá-la em cima do casco do batelão, e ela deslizar para o outro lado. Totalmente mole, sem nenhuma reação para ajudar no seu salvamento. Eu a colocava no outro lado, e ela deslizava para a água. Como eu não me largava dela, assim fiquei lidando com ela até vir a embarcação salvadora.
Aqui, uma explicação. Quando um pequeno barco afunda, uma simples canoa, batelão e outras embarcações similares, para se manter a embarcação flutuando, é só virá-la de boca para baixo. Com isto, parte de sua cavidade, até então côncava, fica com uma certa quantidade de ar, agora na parte convexa, e, com isto, mantém-se a embarcação flutuando. Embora se tenha,talvez, dificuldade de desemborcá-la, serve com um salva-vidas improvisado, enquando chega o socorro. E foi, exatamente, esse aprendizado naquelas águas que colocamos em prática. Mas, para isto, foi necessário, antes de tudo, manter a calma, principalmente os detentores desses conhecimentos náuticos.
E assim procedendo, tivemos condições de aguardar o socorro, já esperado.
Uma das passageiras, a Terezinha, mais experiente, talvez, nadara até a margem. Mas antes, quando a canoa já estava de volta à margem, para ajudar no salvamento, diz a Lourdes que a Terezinha nadava para atingir a margem,ao se aproximar aquela canoa, - aquela tábua de salvação, a Terezinha, naquele desespero de quem está se afogando, se agarrou na canoa. E esta também naufragou. Isto ela soube pela própria Terezinha, pois a Lourdes estava tentando se salvar. E com aquele novo imprevisto, ela abandonou a canoa alagada e continuou nadando, conseguindo chegar lá, apesar de muito ofegante e com as forças já quase que fracassando. Foi uma heroína de si mesma, pois foi corajosa e não usou a Força dos companheiros para atingir os seus objetivos.
E o Zezinho que corria em nosso socorro, teve que retardar um pouco em dar-nos a sua ajuda, pois teve que, primeiro, desalagar a sua canoa, o que o fez de maneira competente e com presteza.
Uma vez concluída a operação de salvamento, as mulheres se dirigiam para a Casa da Solidária e de elevado espírito humanista, a Ritinha, que ficava ali mesmo na parte superior do largo, para ver o que podia ser feito quanto à troca das roupas molhadas por outras emprestadas - limpas e secas.
Enquanto isso, nós, os homens, fomos tirar a água do batelão e procurar os remos. A essa altura, barco e remos já estavam bem abaixo do lugar do naufrágio, levados pela correnteza. Conseguimos botar tudo em ordem, e atracar o barco no barranco, ali mesmo, próximo, para facilitar a todos, no retorno.
E, mais uma vez, servindo-me da boa memória da Lourdes, fomos à casa do ‘seu’ Manoel Pinto, que tinha uma filha amiga das meninas, a Ritinha, esta foi arranjar roupa enxuta e limpa. Nós, homens, secamos a roupa no próprio corpo, naquele sol seco e sem a umidade do período chuvoso. Foi bem rápido.
Esse episódio, que não deve ter durado mais que uns 20 a 30 minutos, para nós, envolvidos no incidente, parece que foi de uma duração bem mais prolongada. Como a juventude tem fôlego e disposição para enfrentar as adversidades e, dependendo delas, uma vez passadas, até com desprezo, a nossa notina continuou. Apenas demoramos mais tempo, porque as meninas - minhas irmãs e suas amigas - tiveram tempo de trocar de roupa, emprestada, enquanto as suas estavam sendo lavadas e secas, o que não demorou muito. Enquanto a roupas secavam, fomos às mangas, fizemos uma boa colheita que compensou todo aquele susto.
Lá, em Conceição do Araguaia, já corria a notícia da ‘tragédia’, e ‘Madrinha’, nossa bondosa Madrasta, já até conjecturava, quase tinha certeza de que o pior teria acontecido, era com a Vivi. Todos estavam muito aflitos até chegarem notícias verdadeiras, sem quaisquer sensacionalismos. Com acontecimentos semelhantes, as notícias são as mais desencontradas. E nós estávamos, a essa altura, dos mais contentes com o final feliz, e tudo já era graça. Era gente caçoando daqueles que mais sofreram, mas agora, podiam rir. Tinha sido mais um dia de aventuras que só acontecem com os jovens daquela idade, daqueles tempos e naqueles rincões que não dispunham de muitos divertimentos.
Apesar de seus parcos recursos financeiros, Papai não se descuidava de nossa saúde bucal e corporal. Assim é que sempre nos mandava ao Dentista, com regularidade. Essa preocupação, infelizmente, não era da maioria dos pais daquela região. Até mesmo algumas famílias mais endinheiradas não nutriam essa saudável preocupação. Era questão de serem ou não pessoas evoluídas. Papai, apesar de seus modestos estudos, era uma dessas pessoas privilegiadas, estava sempre à frente de seu tempo, em muitas coisas e procedimentos. A saúde bucal era uma de suas preocupações básicas. Quando eu ia ao Consultório para o tratamento bucal, eu tinha muito medo de tudo aquilo, - motor, anestesia, agulha própria para extirpar as cáries, etc., não tinha muita pressa de ser atendido. Então, eu ficava horas na sala de espera, ‘negociando’ a minha vez, com alguns outros pacientes, de preferência homens que fossem fumantes. É que a moeda de troca, da vez ou lugar, eram as carteiras de cigarro vazias. Naquela época, a gente brincava com essas carteiras de cigarro, de diversas marcas e cores, consequentemente, que variavam de acordo com a marca do cigarro, e atribuía-se a cada uma seu respectivo valor monetário. As carteiras eram desmanchadas, dobradas as laterais, e ficavam parecendo uma cédula de moeda verdadeira. E com aquele ‘dinheiro’, a gente fazia ‘negócios’, - compra de alimentos e outras coisas mais. Esse ‘negócio’ a que me refiro era, também, de ‘mentirinha’. Tínhamos um amigo que montava um ‘comércio’ ali mesmo nas calçadas, e ali mesmo ‘vendia’ mercadorias de brincadeira. Era uma pequena casa, móvel. ‘Vendiam-se sucos, balinhas, e outras guloseimas. Tudo coisa pequena. E a gente se compenetrava naquelas supostas ‘transações’, que, para nós, eram de verdade. Nesses consultórios, falava-se muito no hábito, no vício de fumar. E aqueles senhores diziam-me que aquilo não compensava. Que eles continuavam fumando, porque já estavam escravos dele. Aconselhavam que eu não aprendesse a fumar, pois era muito doentio. Estava ainda em tempo de não aprender. Como eu procurava ouvir os mais velhos, porque dali vinha quase sempre muita sabedoria, cheguei à conclusão de que não podia continuar tentando a aprender a fumar. E que bons conselhos foram aqueles! Por isso, instintivamente, acatei-os, no que muito ganhei, nos hábitos e na saúde. Quantos hábitos deploráveis eu vi, dali para a frente! Pessoas com quem eu convivi, que o fumo lhes estragou a vida, a saúde. Pessoas que muito sofreram por causa desse funesto vício.
Não posso deixar de, aqui, registrar o interesse que o Governo Federal tinha na proteção aos indígenas, através de um órgão oficial denominado ‘Serviço de Proteção aos Índios, conhecido pela sigla ‘SPI’, nacionalmente identificado. Eu mesmo conheci, em Conceição do Araguaia-PA, o senhor Miguelzinho, incumbido de dar apoio às comunidades indígenas, mormente as nações ‘Carajás’ e ‘Caiapós’, como servidor daquele órgão, naquela região, bem como a outras tribos de outras regiões do Estado do Pará e do alto Xingu. Ele trabalhou muito tempo com aqueles índios, e era de nossa cidade. Ele tinha por aqueles silvícolas verdadeira obsessão de carinho. Dava-se muito bem com esse trabalho. Aquilo era seu mundo. Vivia embrenhado naquelas matas, convivendo com aquela gente selvagem. Ele vestia a camisa daquela sua função. Parece até que ia além do simples vínculo empregatício. Ele se considerava verdadeiro patrimônio daquela instituição. E realmente o era. Mas o governo não pensava bem assim. Tanto que o demitira ou o aposentara sem maiores explicações. Aquele seu afastamento compulsório foi, para ele, como que uma morte. Ele não se conformava. É como se lhe tivesse tirado o peixe para fora d’água.
(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail liciniobarbo[email protected])