As reiteradas mortes nos presídios brasileiros não podem ser definidas como tragédias nem ações violentas de “grupos rivais”. Elas são os sintomas agravados de uma negligência política que encontra guarida na complacência de uma sociedade sádica e segregacionista. Em pleno clima natalino e de confraternização universal, quando tantos falam de amor ao próximo e de solidariedade humana, a realidade brasileira lança suas nódoas sobre a bazófia do discurso oficial, especializado em utilizar-se de eufemismos quando o assunto são as crônicas mazelas que conspurcam o país diante da comunidade internacional e arremessa trevas sobre nossas falácias civilizatórias.
Os massacres de presos que o sistema chama de “rivalidades entre facções criminosas” demonstram não apenas a negligência da classe política, mas, sobretudo, que as prisões sequer são comandadas pelas instituições de justiça criminal e essas mazelas são, tão somente, o reflexo de um crônico problema, algo que já faz parte da “cultura” do sistema criminal e, portanto, a confirmação de uma tragédia anunciada, mas que se revela indiferente aos poderes públicos e à sociedade. Quando a mídia e as instituições, notadamente as instituições de justiça criminal, sincronizam o discurso sobre a existência de uma “atual crise no sistema prisional”, trata-se de um eufemismo, uma tergiversação, para não aludirem às verdadeiras crises que nos assolam como povo, como sociedade, como nação.
Na verdade, os líderes de facções controlam o crime tanto dento dos presídios quanto fora. A grande maioria da criminalidade violenta que ocorre nas ruas parte de dentro dos presídios, enquanto os retrógrados insistem em defender a construção de mais prisões, que se prendam mais pessoas, inclusive os autores de delitos menores e os usuários de drogas, que teve um aumento do número de encarcerados, apenas no ano de 2014, de 349%. O que está acontecendo nos presídios trata-se de um reflexo, no superlativo, de uma falência absoluta da cultura do enfrentamento ao crime em absoluto desprezo às suas causas. Os episódios dantescos que ocorrem nas prisões tratam-se de um exemplar da espécie que comprova o nosso fracasso como civilização. O aforismo do Fiódor Dostoioévski, segundo o qual “é possível julgar o grau de civilização de uma sociedade visitando as suas prisões”, é muito atual e perfeitamente ajustável à sociedade brasileira que, nesse quesito, revela-se bárbara, selvagem. Os sistemas políticos, jurídico, bem como os contrastes sociais segregacionistas, são o reflexo de nossa sociedade, uma sociedade decadente, caracterizada pelo ódio de classe, pela hipocrisia. É uma sociedade corrupta e leniente com corruptos e corruptores, desde que estes sejam classificados como integrantes da mesma casta, uma casta intransponível, intolerante e implacável, contra aqueles que são considerados os “indesejáveis” Há uma simbiose social de uma elite marcada pelo cinismo e que se estrutura na criminalidade, travestidos de “cidadãos de bem”.
A obra de Franz Kafka bem ilustra o tipo de sociedade que predomina no Brasil: Houve uma época, é claro, em que nós cinco não conhecíamos um ao outro... Ainda não conhecemos um ao outro, mas aquilo que é possível e tolerável para nós cinco possivelmente não será tolerado por um sexto. Em todo caso, somos cinco e não queremos ser seis… longas explicações poderiam resultar que o aceitássemos em nosso círculo, de modo que preferimos não explicar e não aceitá-lo…”
Esse desprezo ao “não desejado” confere especial relevo à formatação social e política da sociedade brasileira e, para satisfazê-la, o sistema de justiça criminal atua de forma sistematicamente seletiva, visando o “expurgo” social. As prisões no Brasil refletem com muito realismo essa “assepsia” social promovida pelo sistema penal.
O sociólogo francês Loïc Wacquant, em seu livro “As Prisões da Miséria”, diz que a construção de um Estado penal obedece ao desmonte das políticas sociais. Segundo ele, houve uma redefinição das missões do Estado que se retira da arena econômica e afirma a necessidade de reduzir seu papel social e de ampliar, endurecendo-a, sua intervenção penal.
Surgido em Nova Iorque, a doutrina do “Tolerância Zero”, instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza que incomoda – a que se vê, a que causa incidentes e desordens no espaço público, alimentando, por conseguinte, uma difusa sensação de insegurança, ou simplesmente de incômodo tenaz e de inconveniências –, propagou-se através do globo a uma velocidade alucinante. E com ela a retórica militar da “guerra” ao crime e da “reconquista” do espaço público, que compara os delinquentes, ainda que os pequenos – reais e imaginários – sem-teto, mendigos, autores de crimes de bagatelas, usuários de drogas, furtos famélicos, a invasores estrangeiros – o que facilita o amálgama com o ódio social, de classe, incitado pelo discurso oficial e pela mídia sensacionalista, sempre eleitoralmente rentável.
Para Wacquant, contrariamente ao discurso político e midiático dominante, as prisões estão repletas não de criminosos perigosos e violentos, mas de vulgares condenados pelo direito comum por relação com drogas, crimes contra o patrimônio ou simples atentados à “ordem pública”, eufemismo criado para se criminalizar os movimentos sociais reivindicatórios de políticas públicas, em geral oriundos das parcelas precarizadas da classe trabalhadora e, sobretudo, das famílias atingidas diretamente pelas transformações sociais promovidas pela segregação em razão das condições econômicas, principalmente aquelas alijadas das políticas públicas de proteção social.
Essa parcela de indesejáveis sociais é aquilo que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman denomina de “refugo humano”, entendido como os seres humanos refugados, os “excessivos”, os “redundantes”, os que não puderam ou não quiseram ser reconhecidos ou obter permissão para ficar. Os refugados são um produto inevitável e inseparável da modernidade, é um inescapável efeito colateral da “construção da ordem” e cada ordem define quais as parcelas da população que são “deslocadas”, “inaptas” ou “indesejáveis”.
Diante de uma crise aguda, o sistema penal se encarrega da remoção dos refugos humanos e o local de despejo e de reciclagem do lixo é a invisibilidade social a que estão condenados. Os guetos, cortiços e favelas são os locais de despejos, uma clara e poderosa linha demarcatória a distanciar a Casa Grande da Senzala.
Aos recalcitrantes e sediciosos, aos que ousarem transpor o bloqueio, o sistema penal prontamente se incumbirá de eliminá-los, sistematicamente, subjugando-os ao anátema moral, social, condenando-os à fatalidade de um caminho sem volta, à absoluta falta de perspectivas, senão a de transformá-los no azeitamento necessário ao funcionamento das engrenagens de um sistema sádico, cruel e que se alimenta do corpo e da alma dos refugados, dos destroços humanos.
Como no filme Laranja Mecânica, uma metáfora sobre a importância da clientela do sistema punitivo penal, esses laranjas, no sentido de cobaias da vida e das circunstâncias e conveniências – política, social, econômica), e, seres mecânicos, programados pelo sistema a se aceitarem, resignados, como indivíduos paralelos, incluídos pela exclusão, cientes de suas finalidades como adestrados, impossibilitados ou cerceados da faculdade de pensar e questionar. Esses redundantes podem conviver entre sim, matarem entre si, desde que circunscritos aos limites delineados de seu mundo paralelo. À medida que possam vir a causar perturbação à chamada “ordem pública”, serão rotulados de “dejetos” e o sistema se incumbirá de dar-lhes a destinação devida: a eliminação moral (processo de rotulação e anátema social) e, numa segunda fase, a eliminação física (a morte nos presídios, intramuros, briga entre facções, execução pelos agentes das forças policiais sob o aplauso da sociedade e das próprias instituições de justiça). Esta última deve ser precedida da primeira, para que não impacte os mais sensíveis observadores – ou espectadores. Para que não cause comoção externa e venha a comprometer a “reputação” do sistema de justiça criminal, é preciso que entre em cena, na fase inicial da persecução, o direito penal do espetáculo. Iniciado o festim diabólico, destinado à destruição de qualquer vestígio do humano, o condenado – ou mesmo o preso provisório, sem condenação formal – é arremessado ao calabouço, na zona da invisibilidade social e da perspectiva do humano, para que seja submetido à segunda fase de sua destruição, a definitiva, a eliminação física.
A morte, sob o epíteto de “preso morto durante conflito com outros detentos”, é a apoteose da perversidade do sistema penal, ávido em proporcionar o deleite da sociedade do espetáculo que aplaude decapitações de seres humanos e não vê nisso nenhuma barbárie. É até natural, afinal, “bandido bom é bandido morto, desde que não sejam os de seus círculos sociais.
Quando ocorre o oposto, espetáculo e barbárie deixam de ser apenas uma questão semântica.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – mlbezerraro[email protected])