A melhor definição das reuniões anuais de Davos é do ilustre ministro Rubens Ricupero: “Um circo com muitos picadeiros”. Trata-se de uma vitrine para expor as preocupações dos poucos milhares materialmente mais bem-sucedidos cidadãos do mundo em relação aos bilhões que não tiveram a mesma sorte.
A sensação de Davos foi o presidente Trump. No seu discurso – surpreendendo o auditório –, relativizou o seu conceito de “isolacionismo”. Tentou mostrar que “América Primeiro” não é, exatamente, “América Sozinha”. Sem surpresa, reafirmou seu preconceito contra a imprensa livre, chamando-a de “nojenta e perversa”.
Sua mensagem foi clara. “Não pode haver livre-comércio se alguns países exploram o sistema à custa de outros”... “Não vamos mais fechar os olhos para práticas econômicas injustas, incluindo o roubo em larga escala de propriedade intelectual, subsídios à indústria e planejamento econômico conduzido pelo Estado.”
Reabriu as questões que tem tratado com pouca inteligência desde a campanha eleitoral, dando a entender que tudo o que disse pode ser revisto... desde que se mudem as regras do jogo! O problema é que o “jogo”, a atual “ordem” mundial, é produto do planejamento geopolítico dos próprios EUA, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. As facilidades concedidas à recuperação rápida da Alemanha e do Japão, ocupados por eles, destinavam-se a criar obstáculos na Europa e na Ásia à expansão soviética.
A própria China é produto de uma rara personalidade, Deng Xiaoping, e do inteligente oportunismo da política externa dos EUA. Quando Mao se separou de Stalin, juntou a “fome” com a “vontade de comer” que Nixon e Kissinger souberam aproveitar para isolar ainda mais a União Soviética, que, finalmente, sucumbiu em 1989.
O discurso de Trump foi uma verdadeira confissão de culpa que deveria ter sido seguida por um pedido de desculpas. O mundo que está aí é produto da “Pax Americana”, isto é, da estratégia geopolítica americana dos últimos 70 anos. A questão central é por que Trump se elegeu, apesar de sua falta de compostura e do seu viés autoritário no que se supõe ser a mais sólida democracia do mundo?
A resposta é: porque sua mensagem atingiu setores minoritários que há mais de 40 anos sofrem as agruras da aceitação, pelos políticos, de uma teoria do comércio internacional que há 200 anos chama atenção para as “vantagens” da liberdade comercial, sem considerar que a adaptação da economia real pode levar à punição e ao desperdício por muitos anos do mais nobre fator de produção: o trabalho humano.
Os economistas que assessoraram os governos nessa política venderam “ideologia” como ciência. Recentemente, pesquisas empíricas mais cuidadosas mostraram que a liberalização do comércio sem as precauções necessárias aumenta mesmo a produtividade do trabalhador que continua empregado. O problema é que, sem atenção necessária aos que deverão ser deslocados, isso pode gerar um desperdício do fator trabalho acompanhado por uma inconveniente redistribuição da renda.
Um exemplo típico dessa ideologia é a afirmação apodítica do talvez maior teórico atual do comércio internacional, Paul Krugman, Nobel de 2008: “A recomendação dos economistas pela liberdade de comércio é essencialmente unilateral: ao adotá-la o país serve aos seus próprios interesses, não importa o que os outros façam” [Journal of Economic Literature, 35(1)1997: 113-120]. Perguntem para ele o que pensa hoje, ou melhor, leiam o que ele vem escrevendo (e aconselhando!) mais recentemente.
É claro que a eleição de Trump é um fenômeno muito mais complexo que tem muitas “causas”, algumas não independentes. Em 11 de janeiro de 2018, o New York Times publicou um interessantíssimo artigo de T. B. Edsal, “Robôs não votam, mas eles ajudaram a eleger Trump”, em que usa os resultados de um finíssimo artigo de D. Acemoglu e Restrepo, P. (“Robots and Jobs: Evidence from US Labor Market” – 17/3/2017), que conclui que o uso de mais um robô/1.000 trabalhadores tende a reduzir a relação emprego/população entre 0,18% e 0,34%, e os salários entre 0,25% e 0,50%.
A correlação inversa entre a densidade de robôs/1.000 trabalhadores e a densidade de votos de Trump é notável, um efeito que se somou às consequências das importações da China e do México. Diante desses fatos, a conclusão “otimista” de Davos-2018 não pode deixar de ser preocupante.
(Delfim Netto. Formado pela USP, é professor de Economia, foi ministro e deputado federal)