Dias atrás, publiquei neste espaço um artigo sobre uma verdadeira “blindagem” que o Governo, através da Receita Federal, criou para mais de seis mil privilegiados, que, sem qualquer norma escrita, conferiu-lhes imunidade fiscal, sem obrigação de justificar suas monstruosas movimentações bancárias, enquanto milhões de pobres assalariados e profissionais liberais são “fisgados” pela malfadada “malha fina”, que os obriga a justificar cada recibo, cada gasto, cada recurso que aparece em suas contas bancárias.
A mídia, incluindo “blogs” e as redes sociais, vem mostrando à farta os súbitos enriquecimentos sem causa de políticos e outros “politicamente expostos”, sem que a Receita Federal, sempre ávida em arrecadar, tome qualquer providência.
E os procedimentos de investigações pela Receita, que atingem a nós, pobres assalariados e aposentados, não ocorrem com os mais de seis mil “politicamente expostos” acabando por ser protelados e só ocorrem após outros órgãos, como a Polícia Federal ou o Ministério Público, iniciarem suas apurações.
O conceito de “pessoas politicamente expostas” surgiu dentro da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (Enccla), é bastante amplo e foi incorporado às normas brasileiras a partir da Resolução 16 do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, de 28/03/2007. Diz essa norma: “consideram-se pessoas politicamente expostas os agentes públicos que desempenham ou tenham desempenhado, nos últimos cinco anos, no Brasil ou em países, territórios e dependências estrangeiras, cargos, empregos ou funções públicas relevantes, assim como seus representantes, familiares e estreitos colaboradores”.
E estou a cavaleiro para falar no assunto, pois durante muitos anos, venho sendo sistematicamente alvo da “malha fina”. Em 2009, por exemplo, o ministro Gilson Dipp, Corregedor Nacional de Justiça que antecedeu a ministra Eliana Calmon, baixou, em 08/07/2009, com base no art. 8º, inciso V, do Regimento Interno do CNJ, a Portaria 164/2009, que, após seis “considerandos”, em que cita textualmente meu nome e CPF, criou uma “malha fina” paralela, determinando que a Receita Federal e o Coaf instaurassem Sindicância Patrimonial contra mim, quebrando ilegalmente meu sigilo fiscal e telefônico. E no fim de cinco anos, o Coaf, após vasculhar minha vida e virá-la pelo avesso, atestou que meu patrimônio era compatível com meus ganhos.
O ministro quebrou meu sigilo, mas também “quebrou a cara”. Se isto não for quebra de sigilo, jacaré é elefante. E consta haver centenas de portarias desta natureza, o que gerou a grita da magistratura. E logo após o estabelecimento da celeuma, a voz abalizada do decano do STF, ministro Celso de Mello, através da publicação “Consultor Jurídico” de 22/12/2011, esclarecia que “a Constituição Federal não confere ao Conselho Nacional de Justiça poderes para quebrar sigilo bancário ou fiscal, o ministro Ricardo Lewandowski apenas reproduziu a sólida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria”. Sobre o CNJ, o Santo Ofício ressuscitado para os magistrados, que o digam os colegas profissionais da Justiça.
Mas voltemos aos privilegiados “politicamente expostos”, entre os quais o ministro Dipp se incluía. Todas essas pessoas, sintomaticamente pertencentes não só à classe política, mas também à magistratura, ao Ministério Público, empresas estatais, instituições federais, entre outras, consideradas “politicamente expostas”, foram beneficiadas por algo que auditores fiscais identificaram ser uma monstruosa distorção de uma regra que deveria servir para proteger os cofres públicos e aumentar a fiscalização das autoridades responsáveis por manejar recursos milionários.
Foi exatamente o que ocorreu na Lava Jato. Diretores da Petrobras que já foram condenados na primeira instância, como Paulo Roberto Costa, Renato Duque, Sérgio Machado e Nestor Cerveró, estavam entre essas pessoas protegidas pelas regras da Receita. Na relação dos blindados também estão o ex-governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral, o ex-senador Delcídio do Amaral e o ex-deputado federal Eduardo Cunha. A Receita só passou a olhar para eles com mais atenção após o início da Lava Jato.
Em doze meses, dobrou o número de “pessoas politicamente expostas” que só podem ser investigadas após aval de algum chefe da Receita Federal
Num momento em que o país vive sob a pressão de tirar os privilégios dos políticos – com projetos como o fim do foro privilegiado criminal para que sejam investigados na Justiça comum e não no Supremo –, uma outra lista vip só faz crescer dentro da Receita Federal. No último ano o órgão dobrou o número de cidadãos que possuem uma espécie de “foro privilegiado fiscal”. Em doze meses, o número de pessoas que só podem ser investigadas após a autorização de algum chefe da Receita atingiu 6.052 nomes. No ano passado, eram cerca de 3.000. Nessa relação estão autoridades que ocupam ou ocuparam nos últimos cinco anos os cargos de deputado federal, senador, presidente da República, ministro de Estado.
O jornal espanhol “El País” teve acesso à referida lista, que nossos jornais tinham como tabu, mostrando que temos atualmente 927 deputados e ex-deputados federais, 142 senadores e ex-senadores, 115 governadores, vice-governadores, ex-governadores e ex-vice-governadores, 128 reitores e vice-reitores, além de 174 presidentes de empresas estatais e autarquias federais.Lula, Dilma e o atual presidente, Michel Temer, também estão entre os blindados. A resolução do Coaf permite, inclusive, o ingresso de parentes das autoridades na relação, e talvez por isso os filhos dos blindados que se transformaram em bilionários estejam tranquilos.
A Receita Federal incorporou essa regra do Coaf não para colocar uma lupa nas declarações dessas pessoas, e, sim, para blindá-las de fiscalizações eventuais de auditores. Tudo isso sem uma normatização específica. Se um funcionário da Receita detectar alguma irregularidade na declaração de um ‘cidadão VIP’ e precise cruzar os dados com informações prestadas por um deputado federal, por exemplo, um alerta será emitido aos seus superiores: um delegado, um inspetor e um superintendente da região onde o servidor é lotado. Quase que instantaneamente, esse auditor teria de justificar por que estava checando os dados do parlamentar. O aviso é produzido por um sistema batizado de “Alerta”.
“Ao invés de monitorar as ´pessoas politicamente expostas´, a Receita monitora os auditores que venham a acessar os dados relativos a essas pessoas”, diz o presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), Kleber Cabral, que expôs as chagas dessa vergonhosa ajeitadeira.
Segundo Kleber Cabral, o que acontece na prática é o que ele chama de “foro privilegiado fiscal”. “Não há impedimento para fiscalizar, mas o auditor não tem essa autonomia e acaba sendo constrangido a não ir adiante nas apurações. Nem todos são destemidos e ninguém quer correr o risco de perder seu emprego”.
O sistema ”Alerta”, que é acionado quando algum blindado é incomodado, começou a ser desenvolvido em 2010, ou seja, três anos depois da vergonhosa resolução, durante o governo Lula, por iniciativa do então ministro da Fazenda Guido Mantega. Na ocasião, ele tentou dar uma resposta ao vazamento de informações do imposto de renda de Verônica Serra, filha do então candidato à presidência, e hoje senador José Serra, em agosto de 2010. Três anos depois o sistema foi ampliado e, em fevereiro de 2017, atingiu o maior número de beneficiados por esse “foro privilegiado fiscal” desde que foi criado, conforme fontes do Ministério da Transparência Fiscalização e da Controladoria-Geral da União.
Em nota enviada à reportagem do “El País”, a Receita Federal afirmou que “ninguém que apresente indícios de infração à norma tributária deixa de ser fiscalizado”. O órgão não informou em qual regra se baseia o sistema “Alerta” nem a razão de o número de pessoas politicamente expostas ter dobrado no período de um ano.
A Receita informou ainda que o “Alerta” integra um sistema de gerenciamento de risco institucional e negou que haja qualquer cerceamento de atividade dos auditores ou punições aos que acessarem os dados dessas pessoas politicamente expostas.
De acordo com o órgão, punições aos servidores só acontecem quando eles são responsáveis pelo acesso imotivado, que é quando ele permite, facilita ou fornece sua senha para outras pessoas acessarem os dados protegidos por sigilo fiscal.
O que parece é que neste cipoal de indecências, em que usam de normas não escritas e inconstitucionais, se escritas, deve haver muito comprometimento do Governo com esses atípicos beneficiários. Que medo tem o Governo, através da Receita Federal, de ser retaliado por uns Aécios, Jucás, Renans, Gilmares e outros pilantras protegidos da extensa lista.
É preciso – isto sim! – haver mais transparência e sobretudo uma justificativa para tanta pilantragem e acabar com isto de vez, pois a atitude da Receita equivale àquela regra medieval, quando o emissário das más notícias era morto, em vez de o castigo ser imposto a quem provocou. Em vez de apurar-se o enriquecimento súbito de donos de grandes fortunas, a Receita quer punir é o zeloso servidor que descobre a maracutaia, adotando regra da Idade Média.
O povo precisa saber disso e gritar.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa - AGI e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas - Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado – liberatopo[email protected])