Muitos lutaram para brecar a criação de um órgão que viesse controlar o Judiciário, principalmente os desvios de conduta de magistrados, ao entendimento de que um órgão fiscalizador iria ferir a autonomia daqueles que têm a missão de julgar. Um dos principais óbices à criação do chamado Conselho Nacional da Magistratura, que foi expurgada da Constituição de 1988, resumia-se nas perguntas: Quem iria fiscalizar os fiscais? Haveria ingerência política na escolha dos integrantes? Qual a abrangência real das atribuições do órgão? Ele iria consertar o Judiciário?
Por outro lado, havia os defensores de sua criação, aqueles que desejavam ver o Judiciário com a transparência necessária, sem caixa preta e sem privilégios exagerados ou imposições mesquinhas.
Pois bem, criou-se o Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, ou vulgarmente chamado de “Conselhão”, composto de 15 membros dos diversos segmentos (magistratura de 1º, 2º e 3º graus, MP e OAB) e dirigido pelo Presidente do STF, com o propósito de ser o controle externo do Judiciário, com atribuições muito amplas e um poder de fogo que está causando espécie entre os entendidos, pois, segundo estes, o CNJ está batendo de frente com as normas constitucionais.
Quase ninguém sabe o seu tamanho. Tem 15 Conselheiros, com respectivos gabinetes, assessores, juízes auxiliares e servidores; uma Corregedoria Nacional de Justiça, uma Diretoria-geral; uma Ouvidoria (tudo com gabinetes, assessores, assistentes e servidores); um Núcleo de Apoio às Comissões Permanentes e Temporárias, 8 Secretarias, sendo uma Secretaria-Geral; um Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Servidores do Poder Judiciário, 3 Divisões, 9 Coordenadorias, 5 Departamentos, 56 Seções, com nomes esquisitos, como Seção de Governança em Gestão de Pessoas do Poder Judiciário, Seção de Apoio ao Plenário, Seção de Acompanhamento das Resoluções e Recomendações. É muita gente... e muito emprego.
Nunca fui contra o CNJ, no tangente à moralização do Judiciário, e não é o fato de ter estado lá duas dezenas e meia de vezes, com alguns equivocados procedimentos nas minhas costas que vai me desviar do apoio que sempre lhe dei. Mas um superórgão como o CNJ, que virou o pesadelo de juízes e cartórios, é difícil até de se autogovernar. Conhece-se mais o CNJ pela implacável punição a magistrados, que rende pontos na mídia. Com esta descomunal estrutura mal explicada, tem moral para combater despesas no Judiciário?
Uma das críticas que se fazem a ele diz respeito à suposta defesa de interesses corporativos, como é o caso do teto salarial, que, definido cons¬titucionalmente, corresponde ao salário de ministro do STF. Para o CNJ esta é uma questão relativa. O Conselho já decidiu, por exemplo, que seus conselheiros podem ganhar acima do teto. Dizem que quem já tem uma função no Judiciário merece ganhar um jetom por sessão de que participa no CNJ. As razões apresentadas para a exceção podem ser as mais razoáveis, mas não escondem um fato objetivo: elas “furam” a Constituição.
Da mesma forma, decidiu o CNJ que desembargadores aposentados que prestam assessoria a seus colegas em atividade não estão sujeitos ao teto que vigora para o Judiciário dos Estados. Caminhando “pari passu” com seu congênere do Judiciário, o Conselho Nacional do Ministério Público decidiu, antes, que promotores e procuradores estaduais que acumulam funções também podem “furar” o teto.
A Emenda Constitucional nº 45, chamada de “Reforma do Judiciário”, acabou com as férias coletivas, um velho anseio da OAB e do povo em geral, mesmo porque se entendia serem absurdas férias individuais coexistindo com coletivas, todas regiamente remuneradas. Os inconformados tinham sua parcela de razão.
Pois bem, colocada em prática a ordem da Constituição, a própria OAB gritou: férias coletivas não iriam dar certo, pois implicaria em que os advogados, com os prazos correndo, simplesmente não iriam ter descanso.
Aí o CNJ desferiu o primeiro golpe contra a Constituição: concedeu aos Tribunais de Justiça do país o direito de regulamentar férias coletivas de juízes. O dispositivo fere frontalmente o inciso XII do artigo 93 da Constituição, que aboliu as férias coletivas no Judiciário.- O CNJ tropeçou nas próprias pernas, ao desviar os passos rumo à moralização dos atos do Judiciário.
Provocado pela Procuradoria Geral da República, o STF decidiu, por unanimidade, que o Judiciário não pode se conceder férias coletivas, a menos que seja aprovada uma Emenda Constitucional, pois um ato do Conselho não revoga nem repristina norma da Carta Maior.
Na véspera desse julgamento, o órgão se arrogou o direito de fazer cortes no orçamento do TSE, causando protesto enérgico do ministro Marco Aurélio, que apontou a in-constitucionalidade da interferência indevida do Conselho, como julgou desnecessário seu assessoramento.
Se a campanha contra o nepotismo foi muito bem vinda e angariou elogios ao CNJ, suas últimas atitudes vieram exceder em seu afã normatizante, a ponto de manipular a hermenêutica para burlar a Constituição. “Neste ritmo, vai acabar por dar razão a quem era contra a sua criação” diz um ministro do STF, que participou do último julgamento, arrematando: “O julgamento do STF si¬nalizou forte advertência ao CNJ para agir dentro da ordem jurídica. Ele não tem poderes ilimitados”.
A nossa Lei Maior não se submete a nenhuma outra lei, e muito menos a resoluções administrativas. E o CNJ não tem competência para legislar sobre matéria constitucional. A matéria que, de forma simplista, foi “disciplinada” pelo “Conselhão”, é de competência do Poder Legislativo, e, ainda assim, deverá ser votada e aprovada por quorum qualificado de 3/5 dos membros do Congresso Nacional.
Que o CNJ puna magistrados com as diversas sanções previstas na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar nº 35/79 – LOMAN), admite-se, mas soa estranho é achar-se, tal qual os medievais órgãos do Santo Ofício, acima da lei e da razão. E não se descarta uma boa pitada de política em seus julgamentos, num dos quais me incluo.
E o que mais causa estranheza é que ele é composto por 15 hipotéticos expoentes da hermenêutica jurídica, que, em tese, deveriam conhecer norma tão elementar da hierarquia das leis, que o iniciante do curso visualiza na pirâmide invertida de Kelsen.
Sabe-se que dos atuais quinze conselheiros, existem nada menos que dez que só conhecem sentença e despacho por ouvir dizer, pois vieram do quinto da OAB e do Ministério Público. E se metem a quebrar sigilo sem ordem judicial e a aposentar magistrados desprezando o elementar princípio do contraditório, pois muitas vezes o magistrado só sabe que está sendo julgado quando é intimado para assistir a sessão que irá aposentá-lo. Os holofotes da mídia são mais importantes que a Justiça.
E o pior: só se decide ali politicamente, para satisfazer a pedidos desses políticos de meia tigela, que possuem seus desafetos na magistratura.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa - AGI e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas - Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado, liberatopo[email protected])