Jesus fez parte de um movimento revolucionário. Mesmo os mais reacionários e literalistas bíblicos não poderiam negar esta afirmação. Por sua ousadia em contestar as estruturas opressivas religiosas, políticas e econômicas, Jesus foi perseguido, brutalmente torturado, humilhado publicamente e executado.
Para seus opositores, sua morte serviria de exemplo para mulheres e homens que lutavam a seu lado. Seria uma maneira de calar não só Jesus, mas todo o movimento do qual fazia parte. Para isso não bastava matá-lo, era preciso expor seu martírio e violar sua memória.
Em sua cruz colocaram a inscrição: I.N.R.I (Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum), Jesus Nazareno Rei dos Judeus, título que visava depreciar sua história.
De acordo com as narrativas bíblicas, grande parte do público que assistia ao seu martírio clamava pela sua morte. Em Matheus, 27 encontramos: 39 Os que passavam lançavam-lhe insultos, balançando a cabeça.40 e dizendo: “Você que destrói o templo e o reedifica em três dias, salve-se! Desça da cruz se é Filho de Deus!"41 Da mesma forma, os chefes dos sacerdotes, os mestres da lei e os líderes religiosos zombavam dele, 42 dizendo: "Salvou os outros, mas não é capaz de salvar a si mesmo! E é o rei de Israel! Desça agora da cruz, e creremos nele.”
Jesus, em seus momentos finais, teria dito: “Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem”. Hoje, quase dois mil anos depois de seu calvário, muitos dentre seus pretensos seguidores continuam sem saber o que fazem.
E é bem possível que muitos que se dizem cristãos hoje se juntariam àqueles que pediam a crucificação de Jesus. Na verdade, o fazem de diferentes formas. O silêncio complacente frente às injustiças ou a sua prática deliberada por quem afirma seguir Jesus são mais do que incoerências religiosas, são gritos que pedem a sua crucificação novamente.
Ouvimos gritos de calúnia e zombaria de seu martírio, sua morte e sua história. São as mesmas vozes que violentam a memória de Marielle Franco, minimizam a dor e a indignação por sua morte, ou silenciam diante dela.
São os mesmos gritos que exigem hoje a pena de morte, que desqualificam os direitos humanos e seus defensores, que fecham os olhos para as injustiças e iniquidades tornando-se seus cúmplices. São gritos de crucificação.
Marielle foi executada, juntamente com seu motorista Anderson, por, assim como Jesus, defender a vida e a dignidade de seu povo. Foi silenciada por denunciar a violência policial, assim como a violência econômica e racista que priva direitos, encarcera e mata a população negra e empobrecida.
Esses “bons cristãos” seguem sua vida confortável, indiferentes ao sangue e lágrimas derramados. Indiferentes às Marielles, Luanas, Claudias, Andersons e Amarildos, indiferentes ao próprio sofrimento e luta de Cristo.
Ditos cristãos vociferam pelas redes sociais, pelas ruas e pelos meios de comunicação calúnias criminosas que buscam justificar o injustificável, deslegitimar a luta de Marielle e sua existência, minimizar a dor frente à violência hedionda com que foi arrancada de nós e violentar sua memória. São vozes de quem nada entendeu da ação revolucionária de Jesus.
Incapazes de perceber Jesus vivo nos movimentos por transformação social, reverenciam um Cristo morto, enterrado e sufocado em luxuosos templos de pedra. Enquanto isso, condenam mulheres e homens à miséria, à violência, ao encarceramento e à morte.
O simbolismo da ressurreição de Cristo é sua presença enquanto memória viva na luta por libertação. Assim também viverá em nós Marielle. Mataram seu corpo físico, mas não foi suficiente para calar sua voz, arrefecer sua luta que também é nossa. Assim como Jesus, Marielle vive, ressuscitada na memória de quem segue lutando.
Ontem, no dia 20, atos e celebrações interreligiosas pela memória, justiça e verdade, por Marielle e todos/as que tombaram em luta, germinaram por todo o País. Atos carregados de simbolismo e emoção que demonstram que, mesmo dilaceradas diante de seu assassinato, mesmo em luto, Marielle se faz semente em nossa luta. Transformamos nossa dor em adubo, fazendo “Marielle presente, hoje e sempre”.
Em sintonia com este sentimento, queremos fazer memória do Cristo revolucionário que se faz vivo em nós.
Pai Nosso dos Mártires
Pai nosso, dos pobres marginalizados
Pai nosso, dos mártires, dos torturados
Teu nome é santificado naqueles que morrem defendendo a vida
Teu nome é glorificado, quando a justiça é nossa medida
Teu reino é de liberdade, de fraternidade, paz e comunhão
Maldita toda a violência que devora a vida pela repressão
O, o, o, o, o, o, o, o
Queremos fazer tua vontade, és o verdadeiro Deus libertador
Não vamos seguir as doutrinas corrompidas pelo poder opressor
Pedimos-te o pão da vida, o pão da segurança, o pão das multidões
O pão que traz humanidade, que constrói o homem em vez de canhões
O, o, o, o, o, o, o, o
Perdoa-nos quando por medo ficamos calados diante da morte
Perdoa e destrói os reinos em que a corrupção é a lei mais forte
Protege-nos da crueldade, do esquadrão da morte, dos prevalecidos
Pai nosso revolucionário, parceiro dos pobres, Deus dos oprimidos
Pai nosso, revolucionário, parceiro dos pobres, Deus dos oprimidos
O, o, o, o, o, o, o, o
Pai nosso, dos pobres marginalizados
Pai nosso, dos mártires, dos torturados
(Gisele Pereira, historiadora e cientista da religião, professora do Ensino Básico; integrante da equipe de coordenação de Católicas pelo Direito de Decidir)