O primeiro concurso para a magistratura no Tocantins, realizado em 1989, talvez devido à pressa para se proverem as comarcas existentes, teve uma repercussão altamente negativa, ora pelo vazamento de questões, ora pela interferência direta do primeiro governador, que incluía parentes de correligionários e amigos e desincluía os desafetos, ao sabor de conveniências políticas. Mas, como eventual agitação do assunto, que está protegido pela prescrição, causaria inútil desconforto àqueles colegas, ficará na conta do fato consumado, e prefiro esquecer.
Os primeiros juízes ficaram “sub judice” até 20/02/1996, com o julgamento, pelo STJ, do RMS nº 1.670-TO pelo ministro Ari Pargendler, e o TJ-TO ficou oito anos sendo olhado de esguelha. Quando assumi a presidência do tribunal, tive que criar vinte novas comarcas, o que impunha novo certame: os juízes do primeiro concurso ficaram insuficientes, e em 1996 foi realizado o segundo concurso. Era eu, naquela época, presidente da Comissão de Seleção e Treina¬mento, e tinha a responsabilidade de desmistificar a velha história das “cartas mar¬cadas”.
Para evitar a praga da manipulação das provas e das listas de aprovação, resolvi terceirizar o concurso, convocando uma Banca insuspeita, formada por desembargadores e juízes de Alçada do Rio Grande do Sul, que só conheciam o Tocantins no mapa e iam a Palmas só nos dias de aplicação das provas, corrigidas em Porto Alegre e cujo resultado era publicado no “Diário da Justiça”, desde o “testão” até a prova oral. Proibi a Banca de fazer contato ou receber qualquer pessoa alheia ao concurso, para que não houvesse insinuação de interferência nos resultados. Ninguém conheceu qualquer membro da Comissão, que chegava ao aeroporto e eu os concentrava no hotel e de lá iam direto para as salas de aplicação e depois para o aeroporto.
E o resultado foi que esse certame foi o único que nunca teve qualquer recurso ou contestação nem mesmo da imprensa, e o Tocantins teve a melhor safra de juízes de todos os tempos, e vários migraram para Goiás, onde vêm demonstrando muita competência, ganhando a confiança dos jurisdicionados, pois já chegaram aqui com a experiência adquirida no Tocantins, podendo ser destacados alguns que já estão em Goiânia, dentre outros, Vanderlei Caires, Sirley Martins, Fernando Moreira, Lilian Margareth, Otacílio Zaggo, Luiz Antônio e Mábio Macedo, que não desmerecem a toga.
Provei que não é preciso milagre financeiro para a realização de um certame: com o próprio dinheiro arrecadado das inscrições, foram pagos os membros da Banca, as passagens Porto Alegre/Palmas/Porto Alegre, a hospedagem, o material utilizado, o “pro-labore” dos servidores do Tribunal que trabalharam nas provas, sem qualquer ajuda oficial, e, ao final, mandei recolher aos cofres do Tribunal, à conta de “Receitas Diversas”, o que sobrou. Tudo isto porque não tinha o Governo para atrapalhar.
Na época, em janeiro de 1997, eu já preconizava um Judiciário soberano em suas decisões e despido de uma covardia que ainda hoje vemos, quando publiquei no “Jornal do Tocantins”, o artigo “A águia e o juiz”, que reproduzo agora, principalmente em homenagem ao colega Fernando Cordioli Garcia, de Santa Catarina, que se tornou um ícone como vítima de inclemente assédio moral, traduzido numa impiedosa perseguição por ter enfrentado galhardamente os poderosos e por isso foi aposentado compulsoriamente aos trinta e seis anos, sem haver cometido qualquer ato de corrupção ou o mais leve crime. É o preço que a independência exige.
Diz o artigo, que publiquei há mais de vinte anos:
“Um dia, um granjeiro, andando pelas imediações de sua granja, ouviu uns pios de ave que vinham do mato e, guiado por eles, conseguiu localizar um filhote de águia, que se desgarrara da mãe e caíra do ninho.
Debalde tentou localizar o ninho pelas encostas do penhasco, e também sem resultado o piar da avezinha conseguiu encontrar a ave-mãe.
Levou a pequenina ave quase implume aos pontos mais altos da região, para tentar, com os lamentosos pios, encontrar a mãe. Não o conseguindo, aconchegou-a entre a camisa e o peito, levando-a para a granja e colocando-a no viveiro dos pintos.
Criada com os pintainhos e alimentando-se da ração que a eles era dada, a águia cresceu, botou corpo, emplumou-se, ganhou majestade, imperando seu porte garboso no galinheiro, convivendo com as galinhas e assimilando-lhes todos os hábitos, sem que se lhes despertassem os instintos de ave de rapina ou sequer mais elementar de todos: voar.
Dez anos depois, passando por ali um naturalista, estre ficou encabulado com o comportamento da águia, convivendo com aves que, ordinariamente, lhes são alimento. E o naturalista tentou despertá-la para a sua verdadeira natureza aquilina. Mas sempre que tentava fazê-la voar e conquistar o espaço, a águia retornava ao galinheiro.
Numa das vezes, no píncaro deum monte, ao empreender uma derradeira tentativa, o acaso fez com que um raio de sol ferisse os olhos da águia.
Ao sentir o sol ofuscar-lhe a retina, a águia estremeceu-se, bateu asas, ascendeu majestosamente aos céus e conquistou o espaço, e nunca mais voltou ao galinheiro, passando a compartilhar com as nuvens a soberania das alturas.
Esta fábula, com sabor oriental, mostra que muitos de nós, magistrados, somos essa águia e assumimos o comportamento de galinha, com as frustrações e preconceitos, a falta de coragem de decidir, o excesso de medo e o temos de desagradar os superiores e os poderosos, até que um dia um raio de sol nos fira os olhos e nos liberte desse comportamento temerário e nos liberte desse comportamento temerário e arte covarde.
É preciso que nós, magistrados, a partir da cúpula do próprio Judiciário, assumamos a posição de julgadores corajosos, independentes e imunes a injunções de qualquer natureza, sob pena de vermos o nosso Poder como enorme galinheiro repleto de águias”.
Passados mais de vinte anos, o nosso Judiciário, como um todo, infelizmente degenerou, pois piorou – e muito - com o acovardamento dos seus membros, que só pensam em vantagens pessoais, deixando, por puro medo, de aplicar a lei, comportando-se como autênticas águias de galinheiro.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa - AGI - e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas - Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado. liberatopo[email protected])