Muitos foram os estrangeiros que, em dias passados, buscaram o recanto bucólico de Vila Boa de Goyaz, cidade perdida no fundo do sertão, para o encantamento de vidas úteis à posteridade. Muitos vieram e nunca mais voltaram, outros aqui estiveram e, encantados por nossas belezas, levaram à eternidade o legado de nossa gente. Assim foi com o francês Zukanovich, professor do Lyceu de Goyaz.
Era o primeiro dia de fevereiro de 1901 na velha Paris. Nesse dia, nasceu Antoine Marie Zukanovich, e que, carinhosamente era chamado de Totó, pelo Irmão (o único dentre eles a ter apelido). Era uma bela criança, que cresceu forte e terrivelmente traquina.
Em virtude de promessa da mãe – católica fervorosa, que começou pelo nome dado ao garoto, à idade de oito anos, todos os domingos, tinha, ele, de ir à missa com hábito semelhante ao de Santo Antônio.
Três anos após seu nascimento, ganhou outro irmão, Fernand. E cinco anos mais tarde, chegou o último, Robert. Muito parecidos uns com os outros, saudáveis, Bem humorados e inteligentes, loiros, todos de olhos azuis, menos Antoine Marie, que os tinha verdes, cinco irmãos alcançaram, já no início da adolescência, estatura elevada.
A exceção de Antoine Marie, todos atingiram mais de um metro e noventa, chegando dois deles, como o pai, a um metro e noventa e seis.
Antoine Marie, que só atingira um metro e oitenta e dois, era considerado “baixinho” pelos demais. Fato esse que, com frequência, dava azo a piadas, se bem que o provocado, invariavelmente as recebesse com maior esportividade, mesmo porque sentia-se sempre objeto de muito amor fraternal, funcionando até, graças ao carisma que lhe era inato, como polo catalisador entre irmãos.
Por parte de pai e mãe, de família numerosa e muito unida, gozando de situação financeira estável, viveram juntos, com invejável espírito de fraternidade, infância e adolescência das mais felizes até meados da segunda década do século XX, quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial.
Nessa época, a situação dos estrangeiros já não era fácil Viajaram muito pela Europa e, especialmente pela África, devido à profissão do pai, engenheiro eletricista da Cia. Telefônica francesa que, na época, monopolizada os serviços do setor em parte da Europa e Oriente médio. Por isso, seu irmão mais velho, Emile Hector Edmond, nasceu em Beirute e, Fernad, o quarto, no Cairo, embora franceses, por força do direito à nacionalidade dos ascendentes.
Em 1914, explodindo a primeira guerra mundial, de imediato, Emile foi convocado a servir a pátria. Depois, foi a vez de Chales e, ao final da deplorável catástrofe, até Antoine Marie, com apenas dezessete anos, sofreu seus efeitos. Pela ação nociva dos gases asfixiantes dos alemães, esteve cego por três meses.
Indubitavelmente, essa foi a pior fase de sua vida. Além das privações inerentes á ebulição do próprio irracional conflito, a sensação amarga e indisfarçável do evolutivo constrangimento da pátria ante o despotismo do inimigo, vibrou-se-lhe o estofo, transformando-lhe cruel e inadvertidamente, o inconsequente desabrochar da adolescência, no arcabouço irreversível de homem, sem alternativa, precoce e obrigatoriamente responsável.
Mas, como não há mal que sempre dure, aquela enorme tarja negra que cobria a Europa, um dia, desapareceu. Libertou-se a França das pressões bélicas, e, apesar dos pesares, com inexpugnável força da juventude, Antoine Marie conseguiu sobreviver, emerso aos traumas sofridos.
Curtindo e consciente da metamorfose ocorrida na pátria, na família e, consequentemente, na própria personalidade, imbuído de sentimento e exato da fragilidade do ser humano e da ilusória garantia dos bens materiais, começou, ele, então, a reformular seus conceitos.
E, ainda sob o efeito de tensão do estado de alerta e da incontrolável sensação de medo, que só os produtos emergentes de uma guerra podem explicar, conseguiu encontrar energias para fabricar suas defesas, fechando, como num cofre, seu espaço vital.
Charles tornou-se engenheiro, como o pai. Emile e Fernand formaram-se advogados. Antoine Marie fez-se economista e Robert entrou para o exército. Difíceis foram aqueles tempos de pós- guerra na Europa. O poder aquisitivo baixou sensivelmente e emprego era produto racionado.
Nessa época, foi o pai novamente designado a trabalhar na Cia. Telefônica do Cairo e toda família mudou-se para o Egito, onde cada um dos filhos empregou-se em diferentes empresas francesas, em atividade no oriente. Só Robert permaneceu na França, engajado no exército.
Apesar das experiências anteriores da família na África, havia dificuldades de adaptação aos costumes orientais, pelo que moravam num distrito habitado exclusivamente por franceses.
A inesperada perda da mãe, em 1924, foi um golpe terrível para toda família que, poder-se-ia dizer, ficou um barco à deriva.
Em seu leito de morte, rodeada por marido e filhos, foi a mão de Antoine Marie, que ela escolheu para depositar seu anel de casamento e, foi esse mesmo anel que, anos mais tarde, ele colocou no dedo de sua mulher, Gertrudes, na antiga Vila Boa de Goyaz, tão longe no coração da América do Sul, que, por sua vez, ao morrer confiou-a à sua filha Abadia.
Antoine Marie, muito sensível á morte da mãe, não suportou mais viver no ambiente onde tantas lembranças impiedosamente avivavam sua dor, pelo que, decidiu deixar o Egito, de onde partiu sem rumo determinado.
Naquele tempo, também no Egito, a vida não era fácil. Além das dificuldades da primeira Guerra Mundial, havia os reflexos marcantes de novos e constantes atritos entre as pequenas potências, como uma doença crônica geral e a escaramuça japonesa, apresentava-se como prelúdio que viria eclodir na segunda grande guerra.
Apesar da precariedade dos meios de comunicação e de transporte da época, na medida das possibilidades, Antoine Marie mantinha regular correspondência com seus familiares. Todavia, a partir da deflagração da última guerra mundial, por mais que o tentasse, jamais conseguiu reencontrar a família.
Ao deixar o Egito, Antoine Marie correu a Europa, visitou o Canadá e, finalmente, aportou no Brasil, de onde nuca mais saiu.
Aquinhoado com uma inteligência privilegiada, dono de uma curiosidade intelectual sumamente ativada, não medindo esforços nem tempo para dedicar-se ao estudo ou ao trabalho, tornou-se senhor de uma capacidade de aprendizagem deveras invulgar.
Dessa maneira, adquiriu uma vasta cultura geral, aprendendo inclusive, falar corretamente 8 idiomas: francês (língua pátria), italiano, espanhol, inglês, grego, árabe, tupi-guarani e português; tendo, ainda, bons conhecimentos do latim.
No Brasil, de inicio, instalou-se no Rio de Janeiro, onde, por algum tempo, trabalhou para o Crédit-Lyonnais. Mas, a vastidão e o exotismo de nosso País, ainda bruto, desafiaram aquele estrangeiro, de espírito ávido de aventuras, a conhecê-lo mais fundamente.
Naquela época, grandes eram as dificuldades de transporte e de comunicação. Muitas vezes, os caminhos eram simples picadas, que o mato cobria; mal eram elas abertas, num piscar de olhos, já as camuflava a natureza bravia.
Embrenhado no interior do País, ainda com restrito conhecimento em português, sem querer, empurrado por uma coluna revolucionária, foi levado a Mato Grosso, onde passou quase dois anos em companhia de jesuítas franceses.
Ajudando os padres no seu trabalho de catequese, aprendeu o tupi-guarani e o português. Leu, então, todos os livros de que os padres dispunham, na maioria de teologia.
Finalmente, conseguiu de lá sair engajando-se num grupo de tropeiros que levou à bucólica velha capital goiana.
Chegou ele, num dia muito distante, ao vale do Rio vermelho, na eterna Cidade de Goyaz!
O Lyceu local estava justamente à procura de um professor de francês, pois, o que ocupava o cargo, M. Victor, estava em vias de retornar a França.
Antoine Marie, o substituto e, sendo bastante apreciado seu desempenho, passou a ser solicitado a dar aulas particulares em sua residência.
Estava a criar raízes no chão de Vila Boa.
Realmente, foi com propriedade que desempenhou seu mister de professor; não só ensinando a língua e divulgando a história e a cultura francesa, como, também, transmitindo os conhecimentos adquiridos nas viagens que empreendera mundo afora.
Culto, polido, modesto, e fácil de convívio social e extremamente generoso, tornou-se amigo e muito estimado por seus alunos; o que ficou registrado no grande número de cartas, cartões, telegramas, referências, homenagens, telefonemas e lembranças e deles advindos e que perduraram por toda a sua longa vida, de oitentas e seis anos.
Já conhecendo razoavelmente bem o Brasil, desejava retornar à França, mas apaixonou-se por uma goiana e isso mudou o rumo de sua vida.
Casou-se em Goiás a 17 de março de 1928, com Gertrudes Ferreira da Silva, filha de Antônio Roberto Ferreira da Silva e Guilhermina Alves da Silva.
Gertrudes teve sete irmãos, mas só três deles tornaram-se adultos: Benedito Cupertino da Silva (falecido), João Ferreira da Silva e Abílio Ferreira da Silva.
Em 1929, Antoine Marie perdeu Ida, sua primeira filha, aos seis meses de idade. Em 1933, mudou-se para Araguari, Minas Gerais, onde, em 1934, nasceu sua terceira filha, Maria Abadia. Lá, ele trabalhou como contador para a firma Ferreira & Cia., assim como, lecionava francês no Colégio Regina Pacis.
Na época da segunda Grande Guerra, ouvido sempre colado ao rádio, sofreu pela França como se estivesse em campo de batalha. A ocupação deixou-o sobremaneira abatido. A tensão constante em que vivia tornou-o inapetente, obrigando-o, por outro lado, a fumar em excesso, o que resultou-lhe numa grave úlcera duodenal, a qual, apesar do tratamento regular que lhe era ministrado, somente cicatrizou-se, por completo, após o termino definitivo do combate.
Ele nunca esqueceu a terra querida que lhe trouxe a cor morena da amada esposa, vilaboense de alma e coração.
Em 1946, mudou-se par Uberlândia, onde até 1956, quando transferiu para São Paulo, manteve em atividade um escritório contábil e de auditoria. Ali, com frequência, era convidado a proferir palestra sobre a história e cultura francesa.
Em São Paulo, tornou-se chefe de administração do Departamento Contábil da Cia. Hudson Distribuidoras do Brasil – Óleos e Derivados de Petróleo, onde permaneceu até os 72 anos, quando aposentou-se.
Mas, logo na primeira semana, descobriu que a inatividade o mataria. Por isso, quinze dias depois já se encontrava de volta ao trabalho, exercendo as funções de chefe de administração da Importadora Jorge Laskansi S/A, onde permaneceu até os oitenta e quatro anos.
E, então, só deixou de trabalhar e de dirigir automóvel devido ao grande enfraquecimento de sua visão. Foi, também, com grande pesar que o empregador aceitou sua demissão. Tanto que passou ao sistema de fazer-lhe consultas ao telefone, fato esse que perdurou até sua morte.
Sua filha Maria abadia tornou-se advogada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Casou-se com um paulista, Ayrton Marques Funchal, também advogado.
Desde 1972 dedica-se á pintura, tendo participado de inúmeras exposições no Brasil e no exterior. Conta com trinta e cinco prêmios no seu curriculum, tendo obras na Pinacoteca do Estado de São Paulo – Fiscalização Artística, na Câmara de Vereadores de São Bernardo do Campo, em vários museus e pinacotecas do Estado de São Paulo e em diversas coleções privadas do Brasil e do exterior.
Estudou museologia, frequentando curso de extensão universitária em Londres, com estágio de doze meses no Victoria and Albert Museum.
Participou ativamente, com assessoria jurídica, no recatamento das relações culturais entre França e o Brasil, depois de vinte e um anos de silêncio, e que culminou na maior exposição brasileira de toda a história pátria “Exposição Modernidade”, no Museu de Arte Moderna de Paris – dezembro/87 – fevereiro/880, conforme consta do livro Modernidade, escrito em francês e editado em Paris.
Uma das fundadoras do Centro Cultural _ Museu da Escultura e da Ecologia, que se construiu na Av. Europa, em São Paulo, pela iniciativa privada, por meio dos benefícios fiscais de incentivo à cultura, previsto na Lei Sarney.
Representante do Brasil em vários encontros e conferência sobre artes e museologia, em diversos países da Europa, Maria Abadia fez cursos de extensão universitária nos principais centros culturais da Europa, Estados Unidos, do México e do Egito. Diretora da Sociedade de Amigos dos Jardins – defensora da ecologia.
Maria Abadia deu ao pai quatro netos que, segundo ele, foram o maior prêmio de sua vida.
O casamento de Antoine Marie com Gertrudes constitui-se numa união extremamente harmoniosa e feliz. Viveram, durante quarenta e sete anos, num clima de paz e de amor. Ela faleceu em 16 de novembro de 1975.
Depois da morte da fiel companheira de tantos anos, Antoine Marie passou a residir com sua filha, vivendo, dai por diante, excetuando-se o horário de trabalho, exclusivamente em função dos netos, que lhe eram muito afeiçoados e com os quais tinha grande afinidade.
Até sua morte, em 21 de Março de 1987. Em consequência de insuficiência cardíaca, Antoine Marie e conservou integra sua inteligência, com uma acuidade mental e memória excepcionais, mantendo-se, até o fim, mercê de seus dotes morais e intelectuais e de um dinâmico invulgar, no leme de uma família que ele muito amou e que lhe retribuiu com amor na mesma intensidade.
Embora ardentemente o desejasse, nunca mais voltou à França. Quando era jovem fisicamente válido, faltaram-lhe recursos financeiros. Quando eles chegaram, estava velho, acometido de grave artrose nos joelhos e com a visão bem reduzida.
Antoine Marie Zukanovick jamais perdeu sua identidade francesa. Morreu francês de corpo e alma, mas com a alma goiana a se lembrar da gente de Vila Boa.
A maioria de seus alunos, especialmente os goianos, tornaram-se personalidades de destaque na sociedade, principalmente na área política, como governadores de Estado, vice-governadores, ministros, prefeitos (o ex-prefeito de Goiânia Venerando de Freitas, até deu-lhe para afilhado de batismo, seu filho Carlos), senadores, deputados, muitos dos quais, conhecedores de sua cultura e capacidade de trabalho, facultaram-lhe várias possibilidades de ingresso a cargos públicos, de atrativa remuneração, o que ele sempre rejeitou, preferindo viver mais modestamente, para não ter de renunciar à sua segunda pátria, aqui vivendo a maior parte de sua existência, prestando relevantes serviços á coletividade; não só ensinado a língua e divulgando a história e cultura de sua terra natal, mas particularmente, construindo uma família digna, consciente e atuante, onde cada membro, embora na forma de sua marcante personalidade, pode, livremente e sem esforço, encontrar o seu próprio caminho, para desempenhar, com segurança e desembaraço, a função que lhe compete dentro do contexto social.
Há 90 anos o parisiense Antonie Marie Zukanovick uniu seu destino em Vila Boa de Goyaz com as eternais raízes vilaboenses e deixou as marcas de sua passagem no tempo, na feliz lembrança dos que honraram o nosso berço natal.
(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, especialista em Literatura pela UFG, mestre em Literatura pela UFG, mestre em Geografia pela UFG. Doutor em Geografia pela UFG, pós-doutorando em Geografia pela USP, professor, poeta – bentofleury@hotmail.com)