A nata da filosofia humanista estava ali reunida, em uma festinha cult, para festejar o natalício de uma emérita professora de não menos conceituada universidade goianiense. Um animado grupo de mestres, doutores e pós-doutores, todos com muita estrada no humanismo libertário, esmerava-se, em residência sem nenhum fausto, ali pelos lados do Setor Perim, em atacar a pena de morte, alegando que a necessidade de sobreviver é que empurra a maioria das pessoas para o crime, sendo um nefando atentado contra a dignidade inerente a todo ser humano condena-lo à pena capital.
Iam nisso, em acalorado debate acadêmico, em que não faltavam citações de famosos autores da sociologia, filosofia e antropologia, quando adentra o festivo recinto um grupo de marginais, que de arma em punho, e aos berros, ordenou que todos se deitassem de barriga para o chão: “Todo mundo de cara no chão, cambada de burgueses barrigudos! Vão passando o dinheiro, alianças, celulares, chaves dos carros, tudo o que tiver valor na praça associada!
E foram, aos berros, depenando o festejado corpo docente, que até há poucos minutos, entre goles de cerveja, vinho e uísque, para regar deliciosos canapés, defendiam os que são atirados, por um sistema injusto e excludente, à marginalidade e ao crime, não encontrando outra forma de sobreviver, senão roubando, assaltando e, por vezes, até matando pessoas honestas e trabalhadoras.
Foram horas de terror, uma vez que os assaltantes, não satisfeitos em humilhar suas vítimas, com palavras de baixo calão, desembestaram a comer e a beber, fartamente, enquanto os convivas convidados, bem como a anfitriã, tremiam dos pés à cabeça, sob a mira de armas de todos os calibres.
Não perdoaram nem o aparelho de som, os discos todos, selecionados para a festa, o computador pessoal, da emérita professora aniversariante, e o Lap Top, de 15 mil reais, de um professor de filosofia. Este, no desespero de ver sendo levado o seu único bem de valor (três vezes mais valioso que seu veículo), sabendo que perderia sua tese de doutorado, seus projetos, ensaios, um vasto sistema de aprendizado e ensino, ainda tentou negociar com os meliantes: “Olha, amigo, você me ajuda eu te ajudo... você deixa o meu Lap Top que eu lhe passo um cheque, no valor de 15 mil reais!”
É claro que o bandido não quis negociar, com a malícia e o jogo de cintura com que governos fazem acordos até com o capeta, para compor o rolo compressor do que chamam, enfemisticamente, de “base aliada”. Perdeu o professor doutor suas vastas filosofias, uma vez que malandro não é bobo nem nada, e só acredita em grana real, em espécie.
Muitos temeram que houvessem ali estupros contra namoradas e esposas, mas o grupo de bandidos, composto por gente de todas as raças (brancos, negros, mestiços, cafuzos, mamelucos, em uma demonstração de que sua organização criminosa prima pela ausência de preconceitos”.
Enquanto os marginais faziam o limpa, ali ficou, amarrados e amordaçados, no banheiro, o aterrorizado grupo de filósofos humanistas, defensores ardorosos dos direitos humanos, inclusive para latrocidas, estupradores e assassinos em série. Quando enfim os marginais deram o fora, quando o único celular (que em uma bolsa que escapou ao confisco revolucionário) foi acionado, para pedir socorro.
Tratava-se do ex-namorado da aniversariante, gente do mais alto quilate que, sendo da cor escurinha, ao parar à porta da residência, com seu fusquinha azul, fez com que o magote de humanistas de plantão corresse, em pânico, para o interior da casa, temendo ser a turma do rescaldo, ou do pente fino, que viera levar o que sobrou do ato revolucionário popular, em defesa das classes oprimidas, e em desfavor da burguesia capitalista exploradora da mais valia e dos meios de produção. O que eles não aceitam é que o fato de correr de quem os viera ajudar configura um preconceito inconsciente, coisa difícil de admitir, é claro!
(Brasigóis Felício, escritor e jornalista)