“Vagão, leva-me contigo! Navio, carrega-me daqui! Leva-me para longe, bem longe. Aqui a lama é feita das nossas lágrimas!”
Baudelaire
Era a terceira vez que visitávamos a Itália, tinha um sonho acalentado de há muitos anos; visitar Capri e Anacapri.
Nas vezes anteriores os nossos roteiros não foram favoráveis e acabamos por desistir da visita.
Desta vez, no entanto, estava decidido, iríamos! Desejava ardentemente estar ali com Marília, minha mulher e José Paulo, nosso filho mais velho.
Antes de iniciarmos esta viagem, reli aqui em casa, pela terceira vez, o famoso livro de Axel Munthe: "O livro de San Michele". Portanto já conhecíamos aquela ilha até com detalhes.
Partimos de Roma por uma autoestrada confortável e muito segura, com destino a ilha que no começo de século serviu de refúgio ao famoso médico e pensador sueco Axel Munthe.
Com 3 horas de viagem deparamos com a cidade dominada pelo vulcão Vesúvio . Dali até a ilha de Capri, utilizamos uma embarcação super veloz (Alliscaphe) que rompe as águas do Mediterrâneo em uma velocidade incrível, em vôo rasante. Desembarcamos no porto (Marina Maior) já com uma sensação indescritível de realização pessoal; aportamos na ilha que foi residência de verão de dois imperadores Romanos: César Augusto no ano 29 A.C. e Tibério que ali residiu dos anos 27 a 37 da nossa era.
Vários táxis estacionados, um barulho ensurdecedor provocado pela discussão dos motoristas, todos tentando serem mais simpáticos do que os outros, oferecendo ao mesmo tempo, o "melhor" serviço turístico da ilha. Fomos praticamente empurrados para dentro de uma enorme viatura com capacidade para 10 pessoas, além das bagagens.
O ambiente era de festa, permaneci mais alguns minutos olhando para aquelas montanhas, parecia que via Axel Munthe subindo aquelas escadas intermináveis (cerca de 777 degraus) para atingir a antiga porta de Anacapri onde se encontra San Michele, dava-me a impressão de ouvir o grito de "Maria Porta Lettere" puxando a sua cabra por aqueles caminhos entregando a correspondência para os moradores.
Hoje as escadas foram substituídas por uma estrada pavimentada e tortuosa, da "Maria Porta Lettere" só restou a lembrança da sua personalidade.
Optamos pelo carro do Senhor Humberto, falante como todo italiano; querendo mostrar serviço à menor instigação, dando-nos detalhes de cada acidente geográfico em toda curva da estrada; cada vez que gesticulava e fazia isto muitas vezes, soltava ambas as mãos do volante dando-nos a sensação incrível de insegurança em toda curva mais fechada.
À medida que subíamos descortinava uma paisagem cada vez mais maravilhosa, o azul do Mediterrâneo contrastando com o verde das montanhas, deixavam-nos marcas indeléveis.
Quando atingimos o centro de Capri já havíamos recebido um manancial de informações acerca de tudo sobre a ilha, desde onde viveu Tibério, inclusive com detalhes das festas pecaminosas que aquele imperador costumava realizar, até onde costumava rezar Axel Munthe. Sentíamos que ele, o motorista do taxi, dava-nos estas informações com tanta satisfação pessoal, parecendo ser ele protagonista daqueles acontecimentos, sentia-se orgulhoso de ter nascido naquela ilha tão famosa.
A procura do hotel fizemos a pé pela impossibilidade de circular automóveis na zona mais central da cidade devido o acúmulo inusitado de gente, mas também e, principalmente, pelo fato das ruas serem estreitas.
Acho, no entanto, que a razão principal é obrigar aos turistas, ao andar por aquelas ruas tão alegres e tão floridas, se apaixonarem definitivamente por Capri.
Sente-se uma sensação tão agradável da vida, uma vontade de que aquelas horas não passem, que a procura do hotel torne-se bem difícil para aproveitar-se o máximo possível daquelas alamedas, de ouvir e ver uma multidão de italianos, todos queimados pelo sol, conversando alto e gesticulando todos ao mesmo tempo.
Chegamos ao hotel "La Vega" onde fomos recebidos com cordialidade e carinho (o turista é sempre muito bem tratado na Europa).
O calor, àquela hora, estava sendo substituído por uma brisa agradável e amiga que o Mediterrâneo nos presenteava.
Jantamos num típico restaurante da região, regado a um ótimo vinho da casa, servido em taças de cristal; parecia que estávamos em estado de êxtase ao degustar aquele risoto delicioso que nos foi servido!
Todos os nossos assuntos versavam em torno da indescritível felicidade de estarmos sentados ali, naquela hora.
Voltamos para o Hotel, discutindo no caminho a programação a ser cumprida no dia seguinte, gostaríamos de multiplicar o tempo disponível por um coeficiente de expectativa, sabíamos que não conseguiríamos ver tudo o que desejávamos em um único dia, precisávamos dormir cedo para despertarmos cedo.
No entanto naquela noite, nós, Marília, José Paulo e eu não conseguimos dormir! Sentamos, os três, na varanda do apartamento, vimos a madrugada chegar e praticamente o dia nascer.
A visão da paisagem à nossa frente deixou-nos praticamente sem ação. A lua saindo por debaixo do Mediterrâneo, clareando as montanhas que formavam vales, todos floridos, dava-nos uma incrível sensação de encantamento que decidimos, tacitamente, que não iríamos perder aquele espetáculo inusitado que a natureza havia reservado para nós três naquela noite. Concluímos que se perdêssemos aqueles momentos, dificilmente teríamos a oportunidade de recriá-lo em outra oportunidade. Solicitamos uma garrafa de um bom vinho; cada gole descia pela garganta com uma suavidade que não se consegue exprimir com palavras.
O Mediterrâneo, azul celeste durante o dia, sob o reflexo da luz das estrelas, adquire conotação mais escura; ao longe visualizamos uma luz movendo-se sobre o mar, deve ser um pescador que já se levantou para cuidar da sua vida ou deve ser uma embarcação trazendo Tibério para o seu repouso?
Dia seguinte reiniciamos nossas andanças pela ilha; cedo o Senhor Humberto já nos aguardava, viu-nos de longe, acenava com insistência e hilaridade, mostrava-nos algo embrulhado em um jornal.
- Trouxe-lhes um "vino" que vocês nunca irão esquecer, fábrica própria da nossa família !
Axel Munthe deve ter sentido a mesma sensação que sentíamos quando ele, praticamente ao aportar na ilha pela primeira vez, recebeu do padre Dom Dionísio uma garrafa do vinho "Capri Bianco", sensação de fraternidade universal!
Fomos a Anacapri (Anacapri, ensina-nos o Senhor Humberto, é a palavra grega que significa acima de Capri, mais alto do que Capri).
Nossa principal meta em Anacapri era visitar a casa de Axel Munthe: a vila San Michele. Ele, Axel Munthe foi, além de idealizador da obra, também o seu arquiteto; misturou estilos arquitetônicos da era medieval com tradições renascentistas, com uma solução final de notável bom gosto. Durante trinta anos Munthe trabalhou na construção da Vila, procurando detalhes e muitas vezes derrubando segmentos que não lhe agradavam, para reconstruir novamente.
(Hélio Moreira, membro da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)