Sob o título acima, tomemos como fonte de reflexão um interessante enfoque de Plauto Faraco de Azevedo (Porto Alegre: S.A. Fabris Editor, 1989), em que comenta a nossa arquitetura formal e o papel do hermeneuta diante da dicotomia legalidade e justiça. Na tradição jurídica romana em que se embasa a nossa arquitetura formal, a lei preexiste à própria sociedade, embora os fatos sociais por vezes se contraponham às leis.
Segundo adverte Plauto Faraco, o processo interpretativo para aplicação da lei pressupõe uma posição previamente assumida em relação ao direito e à vida, que vai se refletir no campo jurídico. Assim sendo, o ensino do direito reproduz o sistema jurídico ou a ideia que se tem do direito tradicionalmente concebido, com mera repetição de uma concepção prevalecente, sem a devida hermenêutica ou interpretação da lei.
É preciso evitar a formação meramente tecnicista que prevalece ainda nos cursos de direito, no sentido do direcionamento do raciocino jurídico a nível meramente teórico, apartado da realidade social e dos interesses que envolvem os sujeitos coletivos, grupos ou classes, diante da problemática existencial, como se o direito servisse apenas para camuflar essa situação através de contornos abstratos.
O sistema fechado do ensino jurídico enclausura o conteúdo da disciplina numa linguagem fechada como forma de isolamento do conhecimento reservado a uma privilegiada classe de especialistas. Ora, se o direito é uma disciplina entre outras disciplinas de estudos sociais, é preciso que reformule e atualize também a sua linguagem, a fim de receber a colaboração interdisciplinar e ampliar seu campo semântico através de conteúdos das disciplinas afins.
PAPEL DO INTÉRPRETE
Sendo o direito um ramo dos estudos sociais, não pode isolar-se num compartimento estanque de leis e regras preestabelecidas, mas deve acompanhar a dinâmica da sociedade, que é o centro de gravidade do desenvolvimento jurídico. Para tanto, é preciso mudar o critério de avaliação da norma.
A interpretação da norma não pode reduzir-se ao conceitualismo e ao dedutivismo em que se converteu o direito, baseado em princípios apriorísticos tidos como de validade absoluta e universal. A norma jurídica não é princípio matemático que se aplique aos casos humanos indistintamente. Essa mania logicista que atrelou a lei à jurisprudência conceitual, desviou o direito da dialética histórica e, paulatinamente, de sua função social.
Em nome de uma curiosidade científica do direito, muitos juristas são levados a agir, numa espécie de reflexo condicionado, como meros aplicadores de dispositivos lógico-formais. O juiz não pode circunscrever-se aos limites formais da lei como letra fria. O distanciamento dos critérios valorativos, filosóficos ou sociológicos, em função de uma aparente neutralidade cientifica do direito, surge em consequência da predominante visão positivista.
Essa visão positivista esbarra exatamente na escala valorativa em que a filosofia passa a ser substituída pela teoria geral do direito, por sua vez desvinculada dos juízos valorativos sobre o que seja o direito ou a sua ontologia. Na visão positivista, o direito não passa de uma armadura imposta pelo Estado, dessa forma, abstraindo-se os fatores relativos às forças sociais geradoras da dialética histórica.
ENTRE LEGALIDADE E JUSTIÇA
O positivismo tecnocrático que se quer especializado e eficiente, não passa de uma inconsistência do direito submetido a mecanismos metodológicos e esvaziado de conteúdos humanísticos ou princípios dialéticos. Quanto ao aspecto ideológico, vale observar que a cisão do discurso jurídico, dividido entre legalidade e justiça, é consequência das excessivas fragmentações ou especializações do direito, que se faz em nome de uma falsa cientificidade.
Enquanto o mundo avança no sentido da interdependência dos seus sistemas operativos e da interdisciplinaridade das esferas de conhecimento, a chamada ciência jurídica mantém-se alheia às flagrantes mutações sociais, lavando as mãos ante os conflitos humanos, ou julgando-os indiferentemente à luz da letra fria da lei, numa esfera de ampliação da concepção positivista, já superada ante a nova dialética social.
A interpretação da lei é, portanto, inseparável da interpretação dos fatos sociais a ela inerentes. O positivismo tecnocrático que despreza a interpretação valorativa da lei em função da sua aplicação mecânica, constitui por si só a morte da cultura jurídica no sentido de atividade do livre espírito crítico. O aplicador da lei não pode agir em submissão cega a essa tendência tecnocrática do direito, deslindando a própria dignidade da missão de julgar, intrinsecamente ligada à vida e aos interesses humanos, que são inseparáveis.
Assim também, a justiça e a lei não podem dissociar-se, a não ser para ferir a própria segurança jurídica que resta comprometida com um sistema de poder suprajurídico. Ao ajustar-se a norma jurídica à realidade social vigente, surge a questão da lei justa ou injusta para o julgador. O juiz não deve prender-se à visão prevalentemente lógica, mas sim a uma visão axiológica do direito, articulando a dimensão técnica com a dimensão social e resguardando os valores humanos nele implícitos.
GENERALIZAÇÃO
E ABSTRAÇÃO
As concepções abstratizantes do positivismo jurídico acabam contribuindo para a sua consequente fragmentação, desdobrando-se em distintos modos de juridicidade no interior do mesmo ordenamento jurídico vigente. Resta clara a ineficiência da sistematização lógico-formal das leis, sobretudo quando da aplicação de normas abstratas a casos concretos, posto ser impossível reduzir a ação judicial a uma operação puramente lógica.
Segundo adverte José Eduardo Faria (“Direito e Conflito”, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992), “quanto maior for a diversidade e a heterogeneidade dos modos de juridicidade, mais importantes serão as consequências sociais e políticas da escolha entre métodos hermenêuticos e critérios decisórios, por parte dos interpretes, e entre estratégias alternativas por parte dos indivíduos, grupos, setores e classes sociais em confronto”.
A racionalidade formal do direito estatal fazendo uma distinção entre forma e conteúdo, entre processo e substância, no dizer de Boaventura Santos (apud Eduardo Faria, citado), é uma terra de ninguém, onde se torna possível o acionamento tendencioso e sem restrições, com uma lógica operacional e tanto mais eficaz quanto maior for a tecnologia conceitual ou linguística, bem como a profissionalização dos agentes e a burocratização institucional.
Efeito contrário ao da estratégia processual montada pelo Estado opera-se na contraestratégia arquitetada pelas partes, nem sempre interessadas em julgamento final, as quais se utilizam do formalismo processual como instrumento para protelação de decisões judiciais, quer para burlarem a justiça em função de seus interesses pessoais, quer por não aceitarem o tipo de justiça posta ou imposta pelo Estado. É o que vem acontecendo nas demandas jurídicas atuais.
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa. E-mail: evn_advocacia@hotmail.com)