No estado burocrático de direito, qualquer que seja a questão social que se transforme em questão jurídica, segundo a lógica positivista, conflui na lei, que só ganha utilidade prática para a configuração da lide, quando trazida ao âmbito do processo. Costuma-se dizer que o que não está no processo, não está no mundo jurídico. Fora do processo, é como se nada existisse, nem pode o julgador manifestar-se para a prestação jurisdicional.
Os métodos de interpretação da lei processual se assentam em dois pressupostos básicos: da decidibilidade e da aplicabilidade da lei. Quer dizer: a lei há que ser aplicada qualquer que seja o método interpretativo. Toda questão de direito há de ser decidida dentro da lei. Não pode haver vácuo ou lacuna no ordenamento jurídico, mesmo se a lei for lacunosa. Nesse sentido, como será a reposta da justiça quando um fato surgente não tenha sido ainda previsto em lei? Serve de exemplo o acidente radioativo do Césio 137 em Goiânia, que embora não previsto à época em nosso sistema de reserva legal, provocou a inevitável resposta da justiça, quando trazido ao processo judicial.
Resulta que, no atual estado burocrático, todo fato que interessa ao mundo do direito há de ser solucionado juridicamente (esta é a conveniência), quando trazido ao âmbito processual. Temeroso é quando o devido processo legal, alicerçado numa lógica meramente formal, se transforme numa arquitetura vazia, onde não habite o espírito da justiça. É o caso da recente manifestação da ONU sugerindo acolhimento da candidatura de Lula, que não foi aceita sob o pretexto de contrariar a reserva legal brasileira.
DO POSITIVISMO
JURÍDICO
Lendo a obra já referenciada, “Justiça e conflito”, de José Eduardo Faria (São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992), podemos conhecer melhor a evidenciação do positivismo jurídico, pelo qual a funcionalidade do sistema funcional se dá pela institucionalização da lei como instrumento da disciplina e da ordem social estabelecida, bem como pela sistematização jurisprudencial como fator de coerência e coesão ideológica, e pela interdependência dos poderes constituídos num sistema único de autossustentação.
Impõe-se, para tal integração, uma coerência hermenêutica que resulte numa cadeia normativa que garante a unidade de sentido em todo o sistema jurídico. É nessa ordem de ideias que o autor de “Justiça e conflito” deixa às claras o mecanismo burocrático do estado e seu sistema jurídico correspondente. Adverte José Eduardo Faria que a esse ponto de nossa problemática social, se impõe o desafio para uma mudança de comportamento do poder judiciário, na sociedade também em mudança, conforme o exijam as forças sociais envolvidas no mesmo processo histórico.
Nessa conjuntura surgem questões relevantes para o direito em face dos conflitos coletivos que se desdobram ante a ordem jurídica estabelecida. Questões que envolvem revisão das instituições judiciais e da própria formação dos magistrados, sedimentada ainda numa cultura jurídica tradicional. Na forma organizacional do estado burocrático, surgem também limitações ao poder judiciário para oferecer respostas às crescentes demandas por justiça. Coloca-se em confronto o problema da unidade jurídico-institucional e da diversidade socioeconômica, como desafio para o futuro do judiciário.
DE OUTRO PODER
ERMEGENTE
Transportando esse modelo jurisdicional de avaliação dos conflitos sociais para aplicação também no campo da organização política e da ordem socioeconômica, surge nova problemática na forma organizacional do estado, em que se inclui a atuação do ministério público como um quarto poder a interferir nos demais poderes, com as funções de fiscal da lei e de defesa da ordem social estabelecida. Daí a relevante ingerência do MPF nos episódios que atualmente abalam a ordem socioeconômica do Brasil, desequilibrando a clássica balança da justiça apoiada no tripé constituído de fato, valor e norma.
Hoje o Ministério Público tem personalidade de poder constituído, com unidade, indivisibilidade e independência. Além do mais, permeia todos os demais poderes com a prerrogativa de defender todos os interesses da sociedade, e não apenas direitos e garantias individuais, segundo a ordem legal. Como órgão autônomo, o MP congrega em torno do procurador-geral, os demais procuradores e promotores de justiça distribuídos nas comarcas, para exercerem suas funções e atuarem em políticas sociais, seja por meios judiciais ou extrajudiciais. A propósito do Ministério Público como poder emergente, resumimos, em versos de cordel, a seguinte critica à propalada reforma do Poder Judiciário:
Fez-se o Estado com três pés, na forma triangular. Difícil é o equilíbrio, se um dos pés se deslocar. O pé um diz: faço as leis. Diz o pé dois: executo. O terceiro pé: eu julgo (contrapeso absoluto). Mas começou o pé um a inquietar-se e a mover-se, de tanto pisar na terra em que o tumulto cresce. O pé dois foi assumindo a posição do pé um: já as leis improvisando em situação extra e comum. O pé três às vezes fica com o peso sobre si: com dois pés se revezando, o peso tende a cair.
O pé um diz ao pé dois: o problema é no pé três. Introduz–se mais um pé e se equilibra outra vez. O pé três diz ao pé um: é o pé dois que interfere. O pé um ao pé dois diz: é o pé três que não adere. E prossegue a discussão dos três pés, até que um dia perderão a união, o equilíbrio e a harmonia. Se um legisla e outro julga e outro executa o que quer, surge outro que fiscaliza e é aquele calo no pé. Quem vê o Estado e se ilude com a polêmica dos pés, esquece que o problema é o Estado – ou é o tripés?
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa. E-mail: evn_advocacia@hotmail.com)