Quando cursava o bacharelado em Direito, muitos temas desta ciência me encantavam e muitos me desafiavam. Entre os desafiadores, sem dúvida o direito de propriedade ocupava lugar de destaque.
Difícil de ser estudado mas impossível de ser desconsiderado, o tema propriedade cobrava muita leitura e muita dedicação; Coluna mestra do chamado direito das coisas, a propriedade define regimes políticos e econômicos, na medida em que seja mais ou menos garantida a cada indivíduo.
Árduo de ser estudado, atrai porém como o canto sedutor das sereias para levar, afinal, o descuidado aventureiro para o fundo das águas.
Lembro-me de um curso de Especialização em Direito Civil que conduzi na Faculdade de Direito de Anápolis, hoje UniEvangélica. Apresentada, na primeira aula, a bibliografia básica para o estudo que se prolongaria por dois anos, notei um certo burburinho no fundo da sala. Aproximei-me para saber o que estava acontecendo, até que um dos alunos, com mais liberdade, falou:
Professor, acho que o senhor cometeu um engano aqui.
Qual teria sido?
O senhor colocou na bibliografia básica um livro: A Propriedade, apontando como seu autor José de Alencar...certamente na hora o senhor estava pensando num dos romances deste grande escritor brasileiro.
Deixei o tempo correr solto um pouquinho e respondi ao estudante:
Na próxima aula trarei um exemplar desta notável obra de José de Alencar, para que possa folheá-la. José de Alencar foi um grande romancista, mas tinha também formação jurídica e escreveu um delicioso livro sobre um assunto pesado e tão difícil. O tema também o atraiu.
Conto estas minúcias sobre tema eminentemente técnico e que tenho estudado desde meus tempos de aluno, de bacharel, de especialista, de mestre e de doutor em direito e até hoje reconheço as asperezas do assunto, para poder dizer de um outro pretenso direito de propriedade: direito de propriedade social, sentimental.
Não consigo entender, por mais que busque e rebusque razões, a pretensão de alguns homens que não admitem reconhecer que um relacionamento com uma mulher possa ter acabado, na maioria das vezes por sua própria culpa.
Já não suporto mais ler nos jornais e ver na televisão as notícias de homens matando cruelmente mulheres pelo simples fato de elas não terem conseguido aturar mais as incompreensões do companheiro, namorado, amante ou marido.
Os meios escolhidos para ceifar as vidas das vítimas são os mais variados: desde tiros, facadas, esganaduras até pauladas ou pedradas, revelando um comportamento animalesco, inaceitável. E quando a investigação vem o que se descobre é que a vítima já se separara do criminoso às vezes há muito tempo mas sempre ouvindo a ameaça: se não for minha não será de mais ninguém, como se ele fosse o titular único de um direito de propriedade sobre o corpo e o sentimento da vítima.
E por mais que a notícia e os fatos se repitam neste diapasão, não consigo com eles me acostumar, porque representam um retrocesso à barbárie, um inacreditável comportamento de macho, em pleno século XXI.
Mas, como diz um ditado moderno, a situação nunca é tão ruim que não possa piorar. E é o que estou vendo no caso deste estranho e pretenso direito de propriedade. O que pensei fosse debitado exclusivamente à brutalidade masculina e a seu instinto de apoderamento das coisas e das pessoas, agora vejo também entre as mulheres.
Alarmou-me não apenas a notícia mas a frieza com qual a jovem mulher ( na casa dos trinta anos ) contou como assassinou uma adolescente de mais ou menos dezessete anos, a facadas, pelo simples fato de que ela estava vivendo com um homem que, no passado, fora o seu companheiro e de quem estava separada já há tempos. O mesmo sentimento de propriedade, como se aquele homem e o seu sentimento que um dia foram dela não pudessem pertencer a mais ninguém, mesmo que acabado o relacionamento que os aproximara.
Não é fácil entender isto, esta queda, este desmoronamento dos valores e até mesmo do senso mínimo de racionalidade que vai assolando a humanidade, homens e mulheres, indistintamente.
Agarro-me, assustado, à esperança de saber que quando a escuridão se torna mais densa é hora de aparecer a luz e com ela a verdadeira vida.
(Getulio Targino Lima: Advogado, professor emérito ( UFG ), jornalista, escritor, membro da Associação Nacional de Escritores e da Academia Goiana de Letras. E-mail: gtargino@hotmail.com)