Fazer amor todos os dias, aliás, acordar o dia com amor é o comportamento rotineiro daquele casal. Maria Bethania tem 45 anos e seu marido João tem 37. Ela é uma mulher culta, que dá aulas em três faculdades. São duas graduações, uma em História e outra em Direito, com várias especializações em ambas as áreas, mestrado e doutorado, habilidade para ensinar, e principalmente, carisma a elevam à condição de celebridade entre os estudantes. É a professora lembrada para a aula da saudade, para patrona da turma, para as homenagens, uma ave rara da unanimidade. Ganha bem, mas não tanto quanto desejaria. Tem um filho de dezoito anos do seu curto casamento com Pedro. Beleza comum, vaidosa, atlética e bem cuidada, possui boa figura social. Faz parte dos desejos da sua família buscar a ascensão cultural. Todos conseguiram. Depois do amor, seu dia começa com uma corrida pelo parque ou pedaladas com o marido, um jeito de equilibrar seu corpo e sua alma, suas necessidades físicas e psicológicas. Depois, concentra-se no trabalho. Esse casamento levado ao papel tem quatro anos.
João é um homem utilitário, bonito, de corpo bem definido, fã da musculação e do muai thai. Faz o estilo magro e, esportivamente bem vestido. Tem dons de jardineiro e trabalha num escritório como assistente administrativo. Não é muito interessado em leituras e estudos. Não fez graduação superior e este é seu terceiro casamento. Tem uma filha de dez anos. Gosta de beber com amigos um pouco mais jovens do que ele. As mulheres não tiram os olhos desse homem agradável e opinativo, mas, de pouco conteúdo, pois pode mudar de ideia diante de alguma argumentação.
O casal se dá bem, e em muitos aspectos vive por música, bem ritmado, com desejos iguais e vários planos. Tem muitos amigos em comum, mesmo gosto pelos esportes e pela cerveja, com bom entrosamento. Ninguém iria se queixar de uma vida assim, equilibrada, mas também emocionante. Por ganhar mais, Maria Bethânia está no comando, define as prioridades, compras, viagens. João aceita sem a consciência de que é ela quem dá as cartas e escolhe os caminhos dos dois.
Numa reversão de situações, subitamente surge uma oportunidade para João melhorar profissionalmente numa outra área, o paisagismo. Após alguns cursos, que já vinha fazendo, junto com um amigo monta uma empresa, passa a divulgar seu trabalho na internet, e depois de produzir alguns belos jardins, vira o objeto dos desejos da classe média, fazendo projetos nas áreas nobres. Passa a ganhar bem. Em contrapartida, para Maria Bethânia os pagamentos da universidade minguaram. Devido à crise financeira, redução dos financiamentos e de alunos, o dinheiro da professora se reduziu. Em algum tempo quem passa a controlar os gastos é João. Só que ele fica deslumbrado, adquire um ar arrogante, algo ofensivo, não tem equilíbrio para ser o chefe da família. As brigas acontecem, e algumas vezes pensam em se separar. Mas as divergências são esquecidas.
A ilustrada Maria Bethânia gosta do marido, mas, o acha medíocre, raso, alguém que pensa pouco, e quando solicitado dá uma opinião boba. Sente falta de pensamentos mais elaborados, deseja vivenciar momentos profundos, quer voltar a conviver com alguém de inteligência superior, poética, filosófica, criativa, inesperada. Ela mesma tem fama de ser inteligente. Em seu íntimo passa a sentir saudades de um relacionamento anterior, uma pessoa genial, culta e inteligentíssima, que, por sua vez é cheia de ideias brilhantes, diferentes, polêmicas, com um quê de anarquista. Suas frases eram para confundir de tão surpreendentes, estimulantes, intrigantes, de efeito imprevisível: uma ordem para pensar. Foi um convívio intenso, que durou quatro anos, os divertia e despertava invejas. O moço intelectual, vinte anos mais velho do que ela, é avesso à ginástica, está envelhecido e nunca foi bonito. Afirma ela que este foi o homem da sua vida. Gostaria de voltar àquele tempo. De fato, o amor não é para ser compreendido.
(Mara Narciso, médica e jornalista)