Nesses momentos da turbulência social que afeta nosso país com graves problemas que deságuam no poder judiciário, seria interessante que pelo menos os operadores do direito buscassem reflexão, como se vê do livro “Justiça e conflito” (os juízes em face dos novos movimentos sociais), de José Eduardo Faria (São Paulo: Ed. Revistas dos Tribunais, 1992, já em 2ª edição), de leitura obrigatória para entendimento da nossa dialética histórica e da práxis jurídica atual. Façamos um extrato desse livro, comentando alguns tópicos que nos ajudam a refletir sobre os velhos e novos paradigmas que estão na base de nossas transformações sociais.
DO ESTADO BUROCRÁTICO
Com efeitos da industrialização acelerada no Brasil tendo como suporte político-ideológico o autoritarismo burocrático-militar, o estado foi-se transformando cada vez mais numa superestrutura que absorveu as estruturas organizacionais internas. Tal transformação se deu da seguinte forma, segundo Eduardo Faria: 1 – Publicização do direito privado que abre espaço para o contrato entre as partes individualizadas e livremente relacionadas entre si. 2 – Administrativação do direito público pela progressiva apropriação da titularidade da iniciativa legislativa por parte do poder executivo. 3 – Reprivatização do direito administrativo, que transformou o estado numa poderosa empresa pública gerindo empreendimentos empresariais.
VELHO E NOVO PARADIGMA
A raiz dos novos movimentos sociais no Brasil, como na América do Sul, assenta-se na ruptura dos padrões culturais e das transformações sociais decorrentes do desenvolvimento econômico-tecnológico aqui implantado a partir de meados do século passado. A passagem de um antigo para um novo paradigma resume-se nos seguintes elementos interrelacionados: atores, natureza, conteúdos, valores, modos de atuar interno e externo.
- Dos atores. No velho paradigma são atores os grupos sociais e econômicos que atuam como classes em conflitos de distribuição. No novo paradigma os atores atuam em nome de coletividades atribuídas, não especificamente como classes.
- Da natureza. No velho paradigma a natureza das ações coletivas é homogênea, pela relação dos atores (assalariados e/ou proprietários com os meios de produção). No novo paradigma a natureza das ações coletivas é heterogênea: os atores são coletivos, múltiplos, interclasses, em suas relações com os meios de produção.
- Dos conteúdos. Os conteúdos do velho paradigma são de crescimento econômico e distribuição, segurança e controle social. No novo paradigma os conteúdos são de pacifismo, feminismo, antirracismo, direitos humanos, trabalho participante e não alienado.
- Dos valores. Os valores perseguidos no velho paradigma são progresso material e consumo privado com liberdade e segurança. No novo paradigma o valor perseguido é a autonomia pessoal em oposição ao controle centralizado.
- Dos modos de atuar. No velho paradigma o modo de atuar interno é mediante a organização formal das associações representativas, e externo, através da intermediação corporativista pluralista e de respeito às maiorias partidárias. No novo paradigma o modo de atuar interno é mediante a informalidade, sem representatividade corporativista, e externamente, pela política de protesto e confrontação.
DO DIREITO ALTERNATIVO
Os atores dos novos movimentos sociais convertem os direitos humanos em direito alternativo, em defesa das maiorias marginalizadas. Redefinem as relações da sociedade com o estado através de uma política embasada no próprio sistema social. De consequência, reivindicam novo ordenamento jurídico, eliminando a tradicional relação classe-partido-estado (ou sua legitimidade e eficácia), assim constituindo novos sujeitos políticos numa relação bidimensional com o estado.
Daí nasce o confronto de práticas sociais com o poder funcional e burocrático. O estado, como resposta, fortalece seu aparato constitucional, embora atuando com normas de exceção, devido à ineficácia das leis. Torna-se estado representativo da sociedade, um estado dual: de direito e de exceção, formal e informal. O estado, por sua vez, recorre a estratégias legislativas e processuais para solucionar impasses gerados no interior das estruturas sociais e econômicas. Cria-se dessa forma o chamado momento maquiavélico (na expressão de Pocock), em que os fins justificam os meios.
DO MOMENTO MAQUIAVÉLICO
No Brasil, o momento maquiavélico decorre de três crises: 1 – da hegemonia do setor econômico, 2 – da legitimação no plano político, 3 – da matriz organizacional do estado no plano jurídico-institucional. O denominador comum dessas três crises é a desarticulação entre o modelo econômico e suas formas política e jurídica.
O projeto de um desenvolvimento engendrado como milagre brasileiro, desde os anos de 1970, gerou no fundo conflitos internos entre as classes empresariais pelo choque de interesse dos meios de produção. Esses conflitos impedem os grupos dominantes de definir um projeto político consensual. O estado, incapaz de conciliar a função econômica com a função política (e de compor os conflitos de interesses e as consequentes tensões sociais), entra, por sua vez, em crise de legitimação e passa, desde então, a administrar a crise e não a prosperidade.
A crise da hegemonia econômica e a crise da legitimação política convergem para a crise da matriz organizacional do direito. A crise da matriz organizacional do estado, por sua vez, apresenta dupla face. Primeiro, pela quebra da homogeneidade administrativa em função de interesses heterogêneos e setorizados. Fragmenta-se, assim, a administração, com órgãos incongruentes e sem funcionalidade, presos a uma rede de relações legais e formais, bem como paralegais e informais, no contrapeso dos interesses públicos e privados. Segundo, pela ineficácia do estado em conciliar as contradições sociais surgidas com a crescente industrialização no país, de que resultou uma caótica estratificação social. De consequência, a assustadora maioria de grupos alienados do processo desenvolvimentista é relegada à marginalização jurídica, por sua vez, fruto da marginalização social e econômica. Voltaremos ao assunto.
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa. E-mail: evn_advocacia@hotmail.com)