Conforme o exposto no artigo anterior (Direito não é lei, é justiça), retomemos o enfoque do chamado estado maquiavélico, implantado no Brasil a partir dos anos de 1970, tendo em vista as reflexões sociojurídicas oferecidas por José Eduardo Faria, no seu já citado livro “Justiça e conflito” (1992), o que julgamos oportuno para trazer à mente do leitor novas considerações, numa espécie de retrospectiva histórica que envolve as mudanças estruturais ocorridas em nosso país desde a idealização da nova república.
A partir do período da Nova República (aqui lembro que um de seus protagonistas, Tancredo Neves, fora também protagonista do Estado Novo ao tempo de Getúlio Vargas), desde então se instauraram formas de governos de transição, de sintomáticos momentos maquiavélicos, como da Aliança Democrática de 1985 e da Assembleia Constituinte de 1987, em etapas sucessivas.
Esgotaram-se os meios de negociação, mediação e arbitragem, pela falta de um projeto de poder e de uma clara diretriz administrativa, de que resultou a fragmentação e o enfraquecimento do poder estatal. A heterogeneidade de classes sociais e de interesses em conflito, bem como e organismos institucionais e de procedimentos aleatórios sem coerência, tudo isso resultou na quebra de unidade do estado, gerando uma crise da matriz organizacional.
DA CENTRALIZAÇÃO
ESTATAL
O modelo jurídico lógico-formal que se estabeleceu como sustentáculo do estado moderno, remonta ao movimento iluminista do século dezenove, com exercício de poder sustentado na racionalidade lógica, do qual decorreram as três variantes seguintes: 1 – da liberdade de ação individual, geradora do liberalismo, 2 – da igualdade de direitos humanos, propulsora do legalismo, 3 – da harmonia social ou fraternidade universal, precursora do positivismo.
A crise estrutural do Brasil atual explica-se a partir das transformações verificadas nos planos social, econômico e político-administrativo. Essa crise se reflete nas instituições jurídicas implantadas no tradicional liberalismo burguês aliado ao capitalismo industrial e agora atualizado da forma de neoliberalismo. Em síntese, as instituições jurídicas foram instauradas com a centralização do poder estatal destinado a assegurar, com soberania, suposta segurança nas relações sociais.
Na ótica de José Eduardo Faria, as instituições jurídicas decorrentes da tradição liberal-burguesa se caracterizam da seguinte forma. Pela constitucionalização do poder estatal. Pela unificação das fontes do direito. Pela codificação das diferentes leis e normas. Pela institucionalização das funções normativas. Pela profissionalização das atividades judiciais. Pela atuação padronizada e impessoal dos intérpretes, submetidos a critérios de competência técnica e lógico-formal.
DA RACIONALIZAÇÃO FORMAL
É desse modelo liberal-burguês do direito e do estado, que se processou uma divisão tripartide do poder estatal, ou seja, do legislativo - que faz as leis, do executivo – que as põe em execução, do judiciário – que as aplica, decidindo sobre os conflitos específicos. Esses três poderes convergem a um só ponto, que é o da racionalização formalizante da ordem constitucional, em função da pretendida segurança social.
Em vista dessa racionalização, no plano jurídico, as funções judiciais (diferentemente das funções sociais), tornam-se impessoalizadas, padronizadas e sistematizadas, pelo que todos os indivíduos são considerados iguais perante a lei (não quer dizer que a lei seja igual para todos). Dessa forma, enfeixa-se no processo uma série de atos ordenados, assim resolvendo-se os conflitos de interesses, teoricamente, dentro de uma ordem jurídica previamente estabelecida.
Dentro dessa tendência racionalizante do direito, vale acrescentar a seguinte justificativa filosófica. Se a ordem jurídica é a ordem lógica feita para o mundo humano, admite-se que o homem é um ser lógico e, como tal, deve ser avaliado. Com base nessa premissa, abstraem-se outras dimensões humanas (como se elas não existissem) para se julgar o individuo perante a lei apenas pela sua dimensão lógica (e não sociológica), já que o parâmetro do julgamento é a racionalidade. O que equivale a dizer que em face da lei todos são inteligentes. A nossa própria carta magna arbitra que ninguém pode alegar ignorância da lei.
LIMITES LÓGICOS
FORMAIS
Retomando a linha de raciocínio já exposta por José Eduardo Faria, somos levados a compreender por que o universo do direito se condensa nos limites lógico-formais do processo jurídico. No processo contempla-se a unidade ou coerência dos fatos, a proporcionalidade ou equilíbrio dos feitos, a cognitividade ou cientificidade dos efeitos. Basta para tanto, o apoio de um método lógico, interpretativo das leis. As leis em si são abstratas, mas tornam-se concretas quando de sua aplicação aos casos específicos, visando eliminar os conflitos e os planos por vezes inconciliáveis na dimensão social, mas que encontram solução incontrastável no sistema jurídico.
Isso reporta, mais remotamente, a uma concepção clássica idealizante do homem como ser racional (e não ser social, ou como produto do meio), devendo assim ser visto e educado racionalmente, à luz dos valores lógicos e universais, para que se ajuste convenientemente à ordem social estabelecida, que deveria por sua vez refletir a ordem natural das coisas segundo uma visão harmônica do universo. Foi essa concepção idealizante, que primeiro se aplicou ao mundo da arte, transportada também para o mundo jurídico, já a partir do direito romano, pressupondo-se que o individuo como parte de um todo, deve ajustar-se logicamente ao todo, ou à ordem e à harmonia social.
Só que, nessa escala de avaliação, em nosso direito atual, usa-se como medida a lei e não os fatores medianeiros que pesam sobre o individuo como animal social, quando este falhe, à luz da ordem estabelecida, em qualquer outra dimensão (social, econômica, ética, política, ideológica), pois acaba sendo o individuo cobrado pela dimensão lógica, que preside as demais, vez que esta constitui a medida universal da lei. Eis o sentido da racionalidade lógica como pressuposto fundamental do direito.
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa. E-mail: evn_advocacia@hotmail.com)