Decisões recentes da Justiça Federal estão abrindo um novo caminho para a compensação tributária de créditos judiciais no país. Os Tribunais Regionais Federais (TRFs) vêm aplicando, em alguns casos isolados e de forma definitiva, tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins, anteriormente ao trânsito em julgado daquela decisão (RE 574.706/PR).
Vale frisar que o Judiciário vinha acolhendo a tese da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), de que estando pendente de julgamento os Embargos de Declaração por ela opostos naquele processo, o julgamento não estaria a produzir efeitos, não podendo ser aplicado.
Apenas neste caso, estimativas do Governo Federal, na época do julgamento, previam um rombo na ordem de mais de R$ 250 bilhões, somente na devolução de indébitos judiciais de processos que se arrastam desde 2003, ano em que o STF deu início às análises. Os valores retroagem a março de 2017, mês do julgamento, cujo acórdão somente restou publicado em outubro daquele ano. Se o valor impressiona em termos de orçamento público, impressiona muito mais se considerarmos que, em um cenário de profunda recessão, foram R$ 250 bilhões retirados, indevidamente, do setor privado para investimentos nos setores industrial, de serviços e do agronegócio, na geração de empregos, e no aquecimento da economia.
A arrecadação tributária, por ser a força motriz do Estado, sempre teve a imposição de carga inconstitucional como política econômica de vários dos Governos do Brasil. A lógica é a de que, ante um tributo inconstitucional, somente uma parte dos contribuintes litigará contrariamente, mais da metade desses desistirão no meio do extenuante caminho processual, e ao final, havendo uma mínima parte que se sagre vencedora, o débito será de outra gestão, dezenas de anos à frente. É uma lógica correta, embora subverta qualquer princípio democrático.
A década de 90 assistiu às primeiras e históricas vitórias judiciais dos contribuintes. Dezenas de milhares foram incentivados à demanda judicial, ante as liminares que faziam frente ao penoso e infindável tramitar dos processos, autorizando a compensação dos indébitos.
Isso fez com que o Governo Federal fosse fechando o cerco legislativo, culminando com edição da Lei Complementar 104/05, que introduziu o artigo 170-A no Código Tributário Nacional, proibindo a compensação tributária anteriormente ao trânsito em julgado das ações.
Em decorrência, a mesma previsão passou a constar no artigo 74, da Lei 9.430/96, que trata da compensação no âmbito tributário federal, prescrevendo que a compensação efetuada anteriormente ao término da ação seria considerada “não declarada”, impedindo o contribuinte à defesa administrativa, para além da imposição da pesada multa de 50%.
O Fisco é o maior litigante do Poder Judiciário e integra mais da metade dos processos que tramitam no país. É um dos principais causadores da modorrenta tramitação dos processos. E justiça lenta, é negação de justiça.
Atenta a essa realidade, a sociedade civil articulou a Emenda Constitucional 45/2005, que acresceu o inciso LXXVIII ao art. 5º, passando a integrar o rol dos direitos e garantias fundamentais “o direito à razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
O comando constitucional foi introduzido no âmbito legal através de profundas modificações, dentre elas a edição das Leis 11.418/06 e 11.672/08, que, alterando o Código de Processo Civil vigente à época, introduziram-lhe os artigos 543 B e C, que inauguram, respectivamente, o regime de recursos repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e o regime de repercussão geral, no âmbito do STF. A partir de então, em consonância com os comandos constitucionais (que também derivam da Convenção Americana de Direitos Humanos), o sistema processual brasileiro passou a ser regido pelo regime de precedentes, submetendo todas as instâncias do Poder Judiciário aos termos dos julgamentos realizados nesta sistemática. Em decorrência, alterações no mesmo sentido foram realizadas nos regimentos internos dos Tribunais Administrativos - Carf e Tribunais Estaduais.
Portanto, é evidente que hoje, à luz das profundas alterações no sistema processual civil brasileiro, as limitações então impostas nos artigos 170-A do CTN e 74 da Lei 9.430/96 devem agora ser interpretadas em âmbito sistemático com os atuais direitos e garantias, ora elegidos ao âmbito constitucional.
Neste sentir, torna-se premente que, em face de declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade de imposição tributária em sede do regime de precedentes, a limitação do direito de compensação anteriormente ao trânsito em julgado deve ser afastada nas demandas individuais, que aguardam a penosa tramitação e encerramento. Especialmente em um cenário em que a PGFN atua com força-tarefa na interposição de recursos, procrastinando os feitos.
Vale lembrar que o novo CPC, mantendo o regime de precedentes, também inovou com a instituição da denominada “tutela de evidência”, em seu artigo 311. Nela, não mais se exige o requisito da urgência, bastando a comprovação do direito para o fim de que seja liminarmente assegurado. Com isso, é hoje possível que o Judiciário possa afastar as limitações para a compensação anteriormente ao término do processo, em prestígio a todos os fundamentos nos quais se ampara o atual sistema processual civil.
Por isso, há que se comemorar que os TRFs comecem a aplicar a tese fixada pelo julgamento do RE 574.706 realizado no já longínquo março de 2017, anteriormente ao seu trânsito em julgado. Contudo, sem se esquecer que são casos isolados e raros. A sociedade civil, representada pelos contribuintes e através da comunidade jurídica, deve prosseguir na busca de implementação das mudanças já asseguradas, nessa perversa batalha dos interesses político-econômicos conjunturais contra uma democracia que ser quer saudável.
(Mirian Teresa Pascon, coordenadora do Departamento Jurídico da DBC Consultoria Tributária)