Seguindo a linha do romance histórico em Goiás, a vilaboense Edla Pacheco Saad (1918-1997) enveredou pela trajetória antes feita por Rosarita Fleury, ao investigar o passado goiano, numa perfeita simbiose entre verdade e ficção.
Nesse seu centenário de nascimento, merece todos os aplausos e o reconhecimento do povo de Goiás.
Sua primeira produção foi um trabalho histórico intitulado Itapirapuã, a sesmaria e a cidade que investigou as origens da cidade e toda a sua formação cultural, social e econômica, onde residiu por décadas e, em 1979, deu origem a sua tetralogia Memórias do velho Zaca, que se encerrou em 1997, ano de falecimento da autora. Foram 18 anos de escrita envolvente, nascendo as obras: Zaca, Paredes Cinzentas, Um homem enfrenta o destino e O Major.
Sobre sua produção literária escreveu Nelly Alves de Almeida: “Da cidade de Goiás, o nome de Edla Pacheco Saad mostranos sua constante atuação em nossas letras: seu campo de trabalho é o romance, a genealogia, as crônicas; versátil, pois.
Cronista apreciada, fixa aspectos do cotidiano, em linguagem correta e estilo firme. Acaba de lançar, da propaganda série - Memórias do Velho Zaca, o primeiro volume – Zaca. Trata-se de um romance bem construí do que traz grande informação histórica-política-social relativa à Província de Goiás, no séc. XVIII. Fixa época importante, quando os partidos Liberais (estes aconselhando a reação à força d'armas nas eleições) e dos Conservadores se opunham, de modo drástico, violento, levando a política local ao ápice das perseguições pessoais e às consequências trágicas”.
Utilizando uma forma pouco convencional, o roman-fIeuve, Edla Pacheco Saad inicia sua produção em narrativa em etapas contínuas, mostra todo o passado goiano através de um velho major da milícia goiana. O tempo, nesse romance, tende para o cronológico ou histórico, porque os fatos sucedem-se linearmente, com poucas digressões psicológicas.
Inicia-se a saga do menino Zaca, aos 12 anos, quando fazia os serviços para a mãe, Januária, já viúva, com filhos pequenos e com a vida difícil. Psicologicamente, o menino vai informando, pouco a pouco, como era a vida, quando seu pai era vivo e as dificuldades menores.
Recuando no tempo, a autora vai a 1869, quando o alferes Zacarias Perdigão, na altura de seus 19 anos, sofre perseguição política, daí em diante, segue-se a trama no sentido de comentar seu casamento com Januária, mulher de criação severa, punindo-se sentimentalismos mesmo de depois de casada e já senhora de si: “Como eu desejaria agarrá-lo, beijar-lhe os lábio polpudos e sentir-me firme, segura entre seus braços fortes. Mas... não tenho coragem. Não consigo desvencilhar dessa criação severa que tive. Que diria meu pai se me visse numa situação dessa? Que horror!” (p.39).
A trama segue por vários capítulos comentando os crimes políticos, a pistolagem, as perseguições até a morte do alferes, em 15 de janeiro de 1886, aos 36 anos, no cumprimento do dever. No capítulo XX, Januária chega à Vila Boa com os filhos, indo residir na casa dos pais. Nesse momento, a trama volta ao momento histórico do princípio, em que Januária, viúva, luta com dificuldades, tendo como arrimo o seu filho primogênito, Zaca.
Ao retratar a história goiana, a autora comenta sobre os partidos da época e a luta sem tréguas pelo poder dominante: “É que a política entre conservadores e liberais, anda pegando fogo e aproveitaram esse crime para aumentar a fogueira ainda mais, entende?” (p.152)
Nota-se o fortalecimento de grupos políticos locais que vão fomentar em nosso Estado, mais tarde, a formação de oligarquias, como a dos Bulhões, dos Jardim, Xavier de Almeida e Caiado, além de outros.
Com a morte do pai, Zé Trigais, Januária passa a viver sozinha com as despesas aumentadas, envia Zaca e Marata para trabalharem na fazenda. Páginas bucólicas descrevem o ambiente rural e os costumes da gente interiorana: “Vara de ferrão às costas, aqui estou. Zacarias Perdigão Filho. A terra fofa e quente queima meus pés. Mas é tão bonito a gente ver a poeira vermelha ficar dourada sob a luz do sol! O vento passa morno, carregado do perfume adocicado de flores do ingazeiro grande, que está vestido de alvo lençol. Respira fundo. Agora está cheirando a estrume seco. Caminha de alma encantada. Lá longe, na baixada, a luz dourada brinca nas folhas verdes brilhantes do canavial que some de vista. Sorri com a algazarra que fazem as ararinhas na copa da palmeira buriti. Isto aqui é bom demais. Respira satisfeito o ar impregnado de variados odores e sorri sozinho. Estou me lembrando de meu pai. Fazia tantos castelos para mim. Eu iria estudar muito, ser doutor. E aqui estou nesse cafiundó-de-judas, em pleno sertão, palmilhando o chão quente, vara às costas, como um verdadeiro candeeiro da Fazenda Fartura. Perdoe-me, meu pai, se estou decepcionando o senhor. É que a mãe não está dando conta de sustentar a casa sozinha. Nós somos seis, sete com ela para comer, vestir, tomar remédios só com o dinheiro que o senhor deixou. E num tá dando, meu pai. A mãe costura com a lamparina ali embaixo do nariz até tarde da noite pra ajudar. E eu não sei fazer nada lá na cidade para auxiliá-la. Por isso vim trabalhar aqui. Mas eu prometo pro senhor. Quando nós melhorarmos de vida vou voltar a estudar, pode deixar. E não vou falar errado também. O senhor ficava tão triste quando pegávamos a falar estropiado, lembra-se? Quem estuda aprende tudo e vai pra frente. Não é assim que o senhor dizia? Enquanto o vovô era vivo estava tudo indo bem. Mas veja só a infelicidade. Ele cai... brucutú! e morre de repente. A mãe não combinou mais na casa e tivemos que mudar. Agora a vida tá dura, pai. Marata e eu viemos pra cá pegar no pesado para ajudar a mãe, coitada. Ela tá sofrendo um bocado bão. Não me esqueço do senhor, pai. E como eu ia esquecer? O pai melhor do mundo era o senhor, sim. Não posso ver um rio, uma pedreira e lá vem aquela dor fininha no peito, aquele arrocho sem medida e, aí, eu preciso chorar, pai, senão não aguento. A dor vai me sufocando, vai me engasgando e eu vou ficando sem ar, numa agonia dos diabos e... quando vejo, tô chorando mesmo. Não fique triste comigo, pai. Estou fazendo o mais que posso pra ser homem, mas que tá duro, lá. Assusta-se com o bufar violento dos bois às suas costas”. (p. 228)
De volta à Vila Boa, o sonho de Zaca se realiza e, aos poucos, também se desfaz: estudar no Lyceu de Goiás, segundo estabelecimento de ensino secundário do país, fundado em 1846, local de estudos das mais importantes famílias do lugar. Por perseguição de professores, Zaca tem que sair: “Caminha, cabisbaixo, para o quintal de casa. Nos momentos difíceis é sempre bom a gente andar e mastigar as mágoas. Faz bem. Desanuvia e esfria a cachola quente. Sorri com tristeza. Senta-se, desolado, sob a ateira desfolhada e se reclina no tronco nodoso. O olhar dorido abarca os ramos da árvore como garras erguidas ao céu. Sem folhas parecem ressequidos e mortos. Os pensamentos de revolta continuam saltitantes em sua cabeça desorientada. Você está despedaçada como eu, minha amiga. Também tenho a alma em frangalhos. No íntimo carrego decepções e fracassos. Só levo saudade dos professores Joaquim Gomes de Oliveira e Theodoro Oeckinghaus. Eles sempre me animavam e diziam que o diretor não podia continuar a proceder assim comigo. Infelizmente nada puderam fazer por mim. Cansei de sofrer vexames com os colegas. Suas risotas e brincadeiras me feriam fundo. Suspira dorido. Nunca pensei existir tamanha incompreensão injustiça maior dentro do velho casarão de ensino. Lá se foram os meus sonhos de um dia ser doutor, meu pai. A vida do pobre é dura mesmo. Não tive ninguém para me defender lá e sou obrigado a abandonar os livros. Espicha o olhar tristonho para o azul do céu. Uma nuvem roliça saracoteia ao sabor do vento. Desmancha-se em flocos menores, que se estiram em graciosos meneios”. (p.247).
O segundo volume da tetralogia, intitulado Paredes cinzentas, foi publicado em 1986 e apresenta tempo cronológico na seqüência da trama acerca da existência de Zacarias Perdigão, com alguns recursos específicos da autora com certos truques para escamotear possíveis coincidências com fatos reais.
A trama do segundo volume inicia-se em 1891, quando Zaca, já adolescente, alista-se no Batalhão do 20, tradicional em Goiás. A autora, valendo-se da verdade histórica, enfatiza: “Aproxima-se do casarão do Vinte e atravessa o largo portão cheio de orgulho e confiança. Ao terminar de assinar os papéis, ergue os olhos. Um calendário preso à parede, ostentando o pavilhão nacional, marca o dia 6 de novembro de 1891”. (p.13)
Zaca participa da armada contra o governo de Floriano Peixoto, em 1893. Em sete capítulos, a autora narra o avanço das tropas e as batalhas pelo país. Em 1897, Zaca está de volta à Vila Boa, trabalha na reconstrução da linha do telégrafo e, seguindo em 1990 para o Rio, lá permanece com a família por apenas um ano, voltando para Goiás em 1901, por determinação da mãe que consegue persuadi-lo de viver na capital Federal, perdendo, inclusive, oportunidades de emprego: “Mais uma pequena caminhada e já avisto, na baixada, o Largo do Chafariz. Aqui está a velha praça de minha meninice, palco de brinquedos e estripulias. Vila Boa dos becos cheios de fedentina e ruas tortuosas e estreitas, por onde saímos a flanar livres e despreocupados. Vila Boa, terra minha e de meus pais. Zaca respira fundo, aliviado. Uma paz suave vai, aos poucos, invadindo seu ser. Volta-se alegre, olhos pretos cintilantes, sorriso aberto para a mãe Januária. Estamos em casa, mãe! Chegamos”. (p.204).
Zaca, sobretudo, é um grande personagem dentro da trama, enriquecida pelo teor histórico e lírico. Januária, em toda a história, caminha com a determinação das mulheres goianas do passado, vivenciando dificuldades e sabendo transpor os limites do próprio tempo.
O terceiro volume da tetralogia intitula-se Um homem enfrenta o destino, e foi publicado em 1992. Nele, a história de Zaca segue a partir de 1901, quando, novamente, enquadra-se como soldado da polícia Militar de Goiás, tornando-se sargento em 1903. Casa se, mas logo enviúva. Sua esposa morre de parto, o que era bastante comum naquela época. Dois anos depois casa-se com Luciana: “À tardinha, a chuva, que caíra ininterrupta, faz um intervalo. Um sol pálido mostra a cara amarela e fiapos de nuvens correm no céu nublado. As mangueiras do Largo gotejam sem parar. São como gotículas de brilhantes caindo sobre o verde da grama ao redor. O Tenente veste a farda impecável. Fizera a barba há poucos momentos e se mira ao espelho. Endireita o quepe na cabeça. é hoje, tenho que me apresentar com distinção, segundo Zé Trigais. Ri sozinho. Por uns instantes se esquece da agonia em que vem vivendo essas Últimas horas. Amigo bom o tio. Companheiro sincero pra tudo. É como um irmão mais velho. Sempre puxando minha cabeça para o lugar certo. Sorri mais uma vez. O espelho reflete sua figura. A farda de Tenente assenta-lhe bem. Minha mãe esmera nas minhas roupas. Sinto orgulho quando alguém elogia minha farda sempre bem feita e bem passada. A barba azulada empresta ao rosto esse ar másculo. Alisa o bigode. Torce-lhe as pontas. É. Estou pronto. Vamos enfrentar a fera do Mestre Silva, Perdigão? Sorri com gaiatice e sai. Caminha resoluto e firme. Não vou me intimidar com o Velho. Por que ele não me aceita para marido da Luciana? Será que só ele é o homem perfeito? Pois vai ver. Ela será minha! Haja o que houver. Ela será mi-nha! mi-nha! mi-nha! Assusta-se. Pigarreia. Sacode a cabeça mais uma vez pra lá, pra cá e toma a direção da casa do Mestre Silva. É recebido com cerimônia, na sala, pelo dono da casa. De cara fechada o velho mal abre a boca para concordar com o casamento e já acerta a data da solenidade: 14 de maio de 1905. O ato religioso é realizado pela madrugada, conforme costume da época, na Igreja da Boa Morte e é oficiado pelo Padre Confúcio. Às oito horas casam-se no civil, com o Escrivão do Registro Civil, Joaquim Xavier dos Guimarães”. (p. 28)
E os capítulos vão sucedendo-se numa linearidade a mostrar o cunho memorialista da obra e da tentativa da autora em resgatar, numa simbiose entre história e romance, o caminhar de sua própria família.
Na sequência dos fatos, a romancista vai enumerando os acontecimentos na vida de Zaca, com a chegada dos filhos e os vários destacamentos que recebe, fruto de políticas oligárquicas e perseguidoras da República Velha em Goiás e no Brasil. Narra, também, as questões dos impostos e dos crimes de pistolagem na fronteira do Estado e nas pequenas cidades interioranas: “Faz-se repentino silêncio. Só se ouve o mugido do gado e os pios estridentes dos passarinhos. O fazendeiro chega de manso ao militar e lhe propõe gorda propina, visto a boiada ser numerosa. Perdigão, já encolerizado, destampa com o boiadeiro, a ponto do mesmo sair quase correndo, deixando aos seus peões a incumbência de receberem as ordens militares. Terminada a contagem do gado o militar volta-se para o primo, carrancudo. – Cabo Eduardo, preencha o talão do imposto sem descontar dez réis sequer. Ao receber momentos depois o documento dirige-se ao capataz. Leve ao seu patrão. A boiada só será liberada para a travessia depois do pagamento total, diz secamente. Ao se ver despojado de tão alta importância o boiadeiro jura vingar-se. Só então o gado é impelido para as margens do rio. Os gritos dos peões reboam no ar morno da tarde. O sol claro malha, sem piedade, o dorso cintilante do rio Turvo levantando fagulhas brilhantes. Com estrondo as patas dos ruminantes vão se aprofundando na lama escorregadia do barranco do rio. Os corpos pesados e gordos deslizam e se aprofundam na água barrenta. Jana, cujos cabelos louros brilham mais ao sol poente, sente-se atraída para a balbúrdia no porto. – O que é isto, papaizinho? – É a travessia do gado, minha filha. Fique quieta aí, hein? Ela agarra-se à saia rodada da mãe e tem os olhos cintilantes. Luciana carrega, com muito carinho, o pequeno Leonardo afagando-lhe as costas gorduchas. Nunca assistira espetáculo igual e acompanha a travessia da boiada com curiosidade. – Veja, Perdigão! Grita Luciana apontando ao longe. – O que foi? De cima da cerca de corrente também ele tem o olhar sobre o rio largo. – Aquele boi vai rodando. Veja como ele se encontra longe do grosso da manada... – É mesmo. Deve ser Ulna rês mais fraca e foi colhida pela correnteza forte. – Coitado... será que os peões não viram ainda o que está acontecendo? pergunta aflita sempre de olhos postos sobre o rio”. (p.48)
Edla Pacheco Saad constrói um romance histórico dividido, avaliando com olhos curiosos e acesos os acontecimentos goianos, ciente de que faz história, portanto, feita com alma e sentimento.
Gênero escasso no Brasil, o romance histórico em Goiás sempre recebeu atenção das mãos femininas, como Rosarita Fleury, Edla Pacheco Saad, Armênia Pinto de Souza e Ada Curado.
Edla Pacheco, tecendo história e ficção, demonstra largo conhecimento sobre a economia goiana nos primeiros decênios do século XX, calcada na criação de gado e na agricultura, essa, embora ainda de subsistência.
Com a permanência em lugares distantes, no antigo norte de Goiás, a autora comenta o contato dos habitantes com os índios, coisa frequente no local: “Nos primeiros dias Luciana sente-se perdida naquele mundo desconhecido para ela. Assusta-se, a todo momento, com a aparição inesperada dos índios Caiapós, que habitam a região. Certa manhã trabalha na arrumação de suas malas. O marido saíra com os soldados em inspeção à cidade. As crianças brincam no salão grande do refeitório. Distraída vai cantarolando em surdina, enquanto as mãos hábeis dobram e separam vestimentas das crianças. Alguém esbarra de encontro à mesa comprida da sala, onde ela se encontra. Volta-se assustada. – Oh, meu Deus?! grita alarmada. Olhos esbugalhados, sente-se paralisada de medo e susto. À sua frente, quatro silvícolas possantes fitam-na com atenção. Um cheiro forte de óleo de coco de mistura com Urucu chega-lhe às narinas. Os índios, completamente nus, continuam a examinar a moça assustada. Seus olhos oblíquos percorrem o recinto, as malas abertas no chão. Luciana, apavorada, queda-se extática ante os gigantes marrons. As cabeleiras pretas e lisas caem sobre os ombros largos. Franjas cobrem-lhes a testa e os olhos amendoados despedem chispas de malícia. Conversam em surdina e não param de sorrir. Apanham objetos sobre a mesa. Um espelho pequeno que Perdigão usara para se barbear, antes de sair, é examinado minuciosamente. Entre risos passa de mão em mão. Assim também acontece com um canivete de cabo de madre pérola, de cortar fumo. Abrem a gaveta da mesa, escolhem uma faca. Luciana não se contém. Põe-se a soluçar alto supondo ser o seu fim. Jana e Leonardo, assustados com o choro da mãe, correm para ela e gritam, também, alarmados com os gigantes nus. Os silvícolas, então, miram uns aos outros sempre sorrindo. li proporção que o choro da mãe e dos filhos se eleva, seus risos arrebentam em gargalhadas inocentes”. (p. 80)
Zaca, com a família, caminha de cidade em cidade, onde há desavenças, lutas e brigas para o cumprimento de seu dever, discute as questões de limites de Estado e a arrecadação necessária.
O terceiro volume termina com a morte de Martim, tio de Zaca e com as perquirições do protagonista acerca da vida e de suas contradições: “Perdigão meneia a cabeça com lentidão. Luta contra os pensamentos malucos que correm, desenfreados, na cabeça pendida para o chão. Soluço seco escapa de seus lábios. Assusta-se. Volta à realidade dura do momento. Sacode a cabeça, agora, com mais vigor pra lá, pra cá. Suspira fundo de novo. – Homem não chora! As palavras do vovô José Trigais chicoteiam seu íntimo. O peito arde de dor. Levanta a cabeça. Aspira o ar Úmido com violência, disfarçando sua agonia. – Perdigão, venha tomar o café. Acabei de passá-lo, vem a voz meiga da esposa lá da cozinha. Ele balança a cabeça de novo. Alisa a cabeleira revolta como autômato. As palavras saem amargas, espremidas, cheias de dor: – Ê mundo velho sem porteira! Exclama entre dentes”. (p. 237)
O quarto volume da tetralogia, com o título de O Major, encerra a vida do menino Zacarias de outrora e o militar desassombrado, vivendo as loucuras de um regime injusto e imediatista: “Minha missão é ingrata. Defender o governo, quer seja bom ou ruim. Não, compete ao militar decidir sobre isso. É um problema para os políticos”.
Passando por dissabores, remoções para ermos distantes, Zaca vai seguindo sua vida militar, chegando a Major em 1920 e reformando-se em 1923, para dedicar-se à familia: “De hoje em diante, 26 de maio de 1923, o Major Perdigão passa a ser um homem livre, mulher! Livre, entendeu? Senhor do seu nariz. Dono de sua vontade. Livre para ir e vir onde lhe apetecer. Livre, minha flor! Li-vre! Livre! Exclama de olhos brilhantes também!” (p. 84)
Daí por diante, passam-se cenas da compra da fazenda, a morte de parentes, a Revolução do Duro, hoje Dianópolis, a doença e morte da esposa, a velhice do Major até o seu falecimento em idade avançada. Fechando sua tetratologia das memórias do velho Zaca, Edla Pacheco, assim como Rosarita Fleury, consegue fazer uma narrativa regionalista ao melhor estilo de um Bernardo Élis ou de um Hugo de Carvalho Ramos.
A apologética do romance regional e feminino goiano está centrada na história. Nossas romancistas destacaram-se pela reviviscência da civilização goiana num rastreamento de mais de 200 anos. Recurso importante, o romance feminino em Goiás nasceu sob a égide diegética.
E haverá sempre o confronto entre a verdade e ficção que jamais poderá ser completamente concluído. Até que ponto a imaginação do romancista estaria a serviço da história.
O romance goiano é algo discutido em produções críticas de Gilberto Mendonça Teles e Heloísa Helena de Campos Borges. Gênero para tais autores tido por novo e de poucos autores, dentre estes, a notável vilaboense que construiu uma obra de mérito e valor.
Edla Pacheco Saad nasceu na Cidade de Goiás em 12 de setembro de 1918, filha do Tenente Coronel da Polícia Militar, José Gonçalves Pacheco e Maria do Carmo Pacheco, casal de honra e dignidade dos velhos tempos, moradores do Largo do Moreira de onde se descortinava uma ampla visão dos morros que circundam a antiga cidade.
Na mesma cidade, Edla fez o curso primário e secundário no Lyceu de Goiás, fazendo parte da turma de 1936 da qual foi paraninfo o saudoso professor goiano Alcide Celso Ramos Jubé. Essa turma, no dizer de Alarico Vellasco, sofreu dupla revolução: a Constitucionalista de 32 e a interna em prol da mudança dos uniformes arcaicos do velho estabelecimento de ensino, e, tudo corria em normalidade, haja vista que Ed1a promovia bailes românticos muito ao gosto da época e as competições esportivas onde torcia pelo namorado José Ottacílio de Vellasco Figueiredo, jogador inverterado, líder entre os estudantes daquela ditosa quadra.
Saindo do Lyceu, Edla encaminhou-se pelas sábias lições aprendidas com o velho professor José Péclat e tomou-se mestra de matemática na mesma escola onde estudou. Nesse período de muita atividade, casou-se com o Catalano João Saad, homem de grande honestidade e que em Trindade foi sócio de Gabriel Alves de Carvalho na primeira Usina de Força e Luz daquela cidade, realizando salutar trabalho.
Casados, fixaram residência em Itapirapuã, como autênticos pioneiros, enfrentando a inospidez dos primeiros tempos naqueles ermos. Ali, foram responsáveis pelo Cartório de Notas e imóveis onde Edla foi Tabelião; cuidaram da fazenda, onde criaram os filhos em contato com a natureza e tudo fizeram pelo bem da localidade. Consciente de seu papel histórico, Edla Pacheco Saad compilou dados importantes e escreveu o seu primeiro livro que foi publicado em 1978: Itapirapuã, a sesmaria e a cidade, que teve boa acolhida entre a comunidade e entre os historiadores goianos.
Aposentada, Ed1a Pacheco quis retomar à sua velha cidade chantada entre os morros. Assim, em 1963, comprou o velho casarão, outrora pertencente à jornalista
Oscarlina Alves Pinto, no Largo do Chafariz, rente ao Museu das Bandeiras. Nesse casarão, Edla e João Saad prosseguiram a vida alicerçada na compreensão e no amor.
Grande intelectual, de vibrante imaginação Ed1a Pacheco começou a escrever seus romances embasados na história de Goiás. Assim foram nascendo os romances: Zaca (1987), Paredes cinzentas (1988), Um homem enfrenta o destino (1992) e O Major (1996) que revisitam o nosso passado cultural e o nosso folclore, fixando tipos humanos, a exemplo da pioneira Rosarita Fleury. Deixou ainda inédito: História de Villa Boa (dois volumes), Roteiro histórico e sentimental de Villa Boa de Goiás, Receitas da tia Maria e Retalhos coloridos.
Edla pertenceu às entidades culturais goianas: Academia Vilaboense de Letras, Academia Trindadense de Letras, Academia Catalana de Letras, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, União Brasileira de Escritores, secção de Goiás, Sócia correspondente da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, redatora por vários anos do conhecido jornal “Cidade de Goiás”, liderado por Luís do Couto Filho (Yoiô do Couto)
Modesta e simples, porém profundamente sábia, Edla Pacheco era uma sonhadora do seu Largo do Chafariz, compilando dados sobre Vila Boa, escrevendo, sonhando, vivendo, sofrendo, depois da morte do companheiro de 50 anos, falecido em 1991. Mesmo sozinha, soube ser luz e caminhar na beleza de seus passos firmes, consciente de sua posição no mundo e da missão que Deus lhe dera.
Na data em que recebeu pela Faculdade de Filosofia Cora Coralina da Cidade de Goiás, o título “Honoris Causa”, faleceu repentinamente em 26 de Julho de 1997, aos 78 anos de idade. O seu sensível coração de mulher delicada e cheia de amor, não resistiu ao impacto e parou para sempre!
Mas, a luz da sua sabedoria e a bondade de sua alma permanecerão para sempre no caminho daqueles que a conheceram.
Descanse em paz Edinha Pacheco!
Como exemplo de sua sabedoria, um trecho de sua entrevista a Ebe Lima, em 02 de maio de 1997:
“Não faço planos para a virada do século. Sentir-me-ei muito feliz em ‘ver’ e ‘sentir’ o ano 2000. Ponho-me a matutar: depois de tantas previsões dos sábios, o ar, a terra, o sol e as estrelas serão os mesmos? O dia virá claro e transparente no mês de abril? As tardes calorentas de setembro virão ruborizadas com a mes entardecer? O homem sentirá o mesmo prazer em apreciar o luar, sentir a carícia do ar transparente e o Amor ainda existirá entre as pessoas?”
Existe sim, Edinha,pois eu amo você!
(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, especialista em Literatura pela UFG, mestre em Literatura pela UFG, mestre em Geografia pela UFG. Doutor em Geografia pela UFG, pós-doutorando em Geografia pela USP, professor, poeta – bentofleury@hotmail.com)