Estamos cansadas/os das bandeiras moralizantes e defensoras de direitos que políticos, empresários, intelectuais, a classe média, movimentos sociais populares e muitas pessoas empunham. Todos aparecem como teoricamente corretos e em favor das leis e dos chamados direitos “inalienáveis”.
Todos são seus defensores e a retórica apurada ou os gritos e as palavras de ordem não faltam quando os proclamam. Para isso, usam uma linguagem muitas vezes hermética para impressionar e marcar sua importância. Cegos de seu próprio orgulho ou até de sua ignorância são muitas vezes incapazes de mover uma palha na linha de ações eficazes no cotidiano. Nós nos contagiamos por suas palavras e falsas promessas. Nós chegamos até a reconhecer a importância de suas leis e de seu saber. Mas, a vida e seus imprevistos são sempre mais.
Intelectuais, especialmente os que escrevem e leem livros científicos, querem a partir de sua crença racional ser do bem e também proclamar direitos claros. O clero de diferentes origens, convencido de sua bondade, muitas vezes afoga-se em discursos vomitando crenças metafísicas, fazendo aparentes milagres, prometendo o impossível, e até garantindo sua realização futura confirmada por seu Deus.
Estão convencidos, muitas vezes narcisicamente, de sua palavra contanto que nenhuma ameaça mude seus grandes ou pequenos privilégios. Como sairemos do lodo de nossas próprias idéias e discursos? Como simplificar a fala, as leis, os direitos, os cuidados frente às reais dores humanas? Como sair do legalismo em favor da perda imediata da vida, do abandono de tantas pessoas vítimas de acasos e necessidades? Como cultivar a compaixão entre nós?
Sinto que estamos quase sem rumo e todos misturados nessa massa humana barulhenta e instável que, embora condenada ao efêmero da vida, age como se fosse eterna e vivesse certezas absolutas. Falamos de direitos sem de fato nos curvarmos diante da imediata necessidade dos que de fato estão com sua vida a descoberto.
Com a filósofa espanhola Adela Cortina em seu livro “Aporofobia”, fobia aos pobres ou medo, ou recusa, ou distância dos pobres, acredito na complexidade de nossas relações políticas e econômicas em relação ao ‘outro’, o outro, o estrangeiro, o imigrante, o diferente do dominador padrão ou de mim. O outro não é qualquer outro, o outro não é um genérico ou um universal. O outro tem cor, etnia, religião, classe, contexto, mas, sobretudo dólares no bolso ou no cartão de crédito. E é aí que se situa toda a diferença.
Por exemplo, as lutas identitárias, quer religiosas ou políticas, quer étnicas ou de gênero, são marcadas pelo corte da aporofobia. O que quer que façamos pode ser aprovado ou rejeitado, permitido ou proibido quando estamos acompanhados pelo estatuto de pertencer em primeiro lugar à identidade dos que são reconhecidos como cultuadores e mantenedores fiéis do capitalismo.
Esses fiéis têm atestado batismal dado pelo cartão de crédito, atestado dado e aprovado pelo sistema vigente. Esta identidade invisibiliza as diferenças, as torna suportáveis e lhes dá direito de cidadania internacional. Torna-se “passe livre” e quem a possui não sofre qualquer constrangimento e pode gozar de todos os benefícios da liberdade e do direito capitalista.
Podem entrar e sair de hotéis e shoppings de luxo, pode-se receber honrarias públicas internacionais mesmo aquelas reconhecidas pelos prêmios internacionais de direitos. Podem frequentar palácios reais e episcopais, ter colóquios privados com autoridades supremas, mudar publicamente de opinião e outras benesses garantidas.
Os preconceitos e os conflitos identitários existem apenas para os degraus inferiores da hierarquia social. Os grandes, os que degustam do mesmo champagne e caviar, têm grande tolerância entre si, suportam suas diferenças, suas cores, suas crenças religiosas, seus cheiros e orientações sexuais porque vivem do mesmo estofo ou com o mesmo ‘passe livre’ que lhes permite e exige respeito mútuo, ao menos para salvar as aparências.
Lembrar essa situação incômoda nos convida a ir mais longe do que a simples defesa dos focos identitários e de suas lutas de reconhecimento. Embora admitamos sua grande importância e a validade de suas reivindicações atuais, temos que admitir que existe algo mais a ser observado e considerado. Para além do universalismo dos direitos humanos há uma espécie de berço seletivo no qual eles repousam.
Trata-se do berço dos privilégios que seu ‘passe livre’ financeiro lhes proporciona. As leis na teoria são para todos, mas repousam num Direito deitado em um ‘berço esplêndido’ de privilégios. Quem não tem o berço simbolizado pelo cartão de ‘passe livre’ não tem Direitos. E não tem Direito a leis igualitárias que deveriam em primeiro lugar favorecer a que todos tenham o vital para a manutenção de suas vidas. Esse velho vício humano dos ‘privilégios dos donos do ouro’ ainda persiste como marca quase indelével em nós.
Tudo gira em torno do vil metal agora volatizado em ‘bancos de nuvens’ reconhecidos internacionalmente e localmente. Todos o desejam e ele vai penetrando em larga escala em todos os ambientes. Será mesmo que o apartheid na África do Sul terminou? Será mesmo que os Estados Unidos ou Israel temem o islamismo quando recebem os príncipes do petróleo? Será que o racismo norte-americano e brasileiro é igual para todos os negros e negras? Será que as mulheres agora procuradas pelos partidos políticos, pelos bancos, pelas empresas de grandes empreendimentos e até pelas igrejas apontam para o crescimento da dignidade das mulheres?
Cegos de orgulho por nossas pequenas lutas identitárias ou pelo respeito pretendidamente radical às nossas leis nacionais, talvez não percebamos o roubo mais profundo de nossa dignidade. Não percebemos que o sistema capitalista entranhado em nós, em nossas instituições e lutas, nos leva aonde não queremos ir imaginando muitas vezes que estamos no bom caminho. Ele penetra em nossa intimidade, em nossos sonhos e a tal ponto que só conseguimos sonhar a partir dele, decidir a partir dele, pensar com ele, ser livre a partir da liberdade que ele nos permite ter.
Tudo o que escrevo agora certamente não é novidade. Apenas intuo que temos que nos lembrar dessas ‘antiguidades’ que nos habitam porque as armadilhas que o capitalismo arma e que nós armamos a nós mesmos são tão grandes e sutis que às vezes nem as percebemos.
E mais, as armadilhas provindas de nossa própria ingenuidade transformada na crença na bondade inerente das pessoas muitas vezes nos impedem de ver as nefastas transações dos poderes estabelecidos sobre nós. O que nos ajuda a viver pode também nos matar. Esta é a dialética contraditória da vida. Mas, apesar disso ousamos esperar... Talvez de nossas entranhas, um dia, algo melhor possa surgir como aquela flor cantada que “brotou do impossível chão”.
(Ivone Gebara, freira católica, filósofa e teóloga feminista de atuação internacional. Reveza-se às quintas-feiras com Gisele Pereira)