Como natural defensora da classe dos magistrados, a Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego) sentiu-se incomodada com a atitude tomada pela OAB/GO, que, indiretamente, teve sua participação na retirada da licença-prêmio que seria aprovada num recente pacote que aumentou em mais 33 varas e seis desembargadores no Judiciário goiano.
Imediatamente após a publicação do artigo sobre a licença-prêmio para o magistrado (DM de 29/07), a colega Silvana Marta publicou na edição do dia seguinte o artigo ‘Liberato Póvoa foi injusto com o Saeg”, pois, apesar de ter a OAB barrado a tentativa de o TJ-GO emplacar mais um privilégio, eu não mencionara a atuação do Sindicato dos Advogados do Estado de Goiás (Saeg), presidido pelo atuante colega Alexandre Ramos Caiado. Ocorre que as notas anteriores não mencionaram essa particularidade, e supus que fora a própria OAB que promovera aquela ação. Fica aqui meu “mea culpa”, redimindo-me pelo fato de ter injustamente omitido o significativo mérito do SAEG. E dou a mão à palmatória a Alexandre Caiado.
Imediatamente após meu artigo, a Asmego divulgou nota oficial, em que “realça a legalidade da licença-prêmio à magistratura”, esclarecendo que “esse benefício é concedido aos servidores públicos em geral e, desde 1993, aos membros do Ministério Público (inciso III, parágrafo 3o, do art. 222 da Lei Complementar 75/93)”, esclarecendo que o STF e o CNJ reconheceram que, entre as carreiras da magistratura e do Ministério Público, há simetria ou isonomia, de modo que os direitos e benefícios de uma carreira são aplicados a outra. Correto o raciocínio da Asmego, mas, a meu sentir, não foi correto àquela entidade de classe ter afirmado que “a proposta legislativa representa, portanto, o cumprimento tardio de um direito devido aos magistrados há 25 anos. A associação observa que tal direito concedido aos membros do Ministério Público nunca foi questionado”.
Concomitantemente, em vez de se limitar a expor seu descontentamento, a Diretoria da Asmego atacou frontalmente a OAB, ao colocar em xeque a questão da moralidade que ficara implícita nas entrelinhas da reclamação da Ordem. Pois bem, sem medir meias palavras, numa concisa, mas contundente nota oficial, a Asmego afirmou: “Produto do crime não se torna lícito, tampouco moral, quando serve para o pagamento da defesa do acusado”; “A advocacia critica a licença-prêmio da magistratura, mas não debate os honorários milionários cuja origem não é apurada”, e “Honorários produtos de crime também são produtos da corrupção e deve haver seu perdimento em favor do Estado”.
Tal manifestação, apesar de receber aplausos de um pré-candidato a presidente da OAB, ensejou a pronta manifestação, em nota de repúdio, do mesmo Saeg, onde corajosamente se pontuou várias questões relevantes a contrapor os argumentos da infeliz nota da Asmego, entre os quais merecem relevo a afirmação de que se tratou de assaque “contra a Advocacia, valendo-se da inaceitável e reprovável generalização com o nítido e único propósito de – sem êxito – arranhar a honorabilidade da tão digna e imprescindível Advocacia”, tendo registrado, também, que “...para se considerar determinado numerário / capital como de origem ilícita o ordenamento jurídico pátrio impõe a existência de decisão judicial transitada em julgado nesse sentido e, Jamais, presunção abstrata e rótulos destituídos de fundamentos e requisitos legais positivados”.
Sem pretender encompridar a história, e não obstante ter sido magistrado por trinta anos e bem menos tempo como advogado, ouso discordar da magistratura neste entrevero dialético, por razões muito simples.
A Constituição Federal não especifica claramente a função do magistrado, incluindo-a no rol genérico das atividades do Judiciário, que, em linhas gerais, destina-se a distribuir o direito, enquanto que em se, tratando do advogado, sobreleva sua importância, ao destacar um artigo especialmente para dizer que “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.” (art. 133). E esse preceito, por si só, dá a exata importância da função do advogado, que legitima sua interferência no caso da licença-prêmio, contestada sem razão pela Asmego, pois é preciso lembrar-nos e que para se ser juiz não há outro caminho senão passar pela advocacia atuante.
Quanto ao fato de que os honorários podem ser fruto de dinheiro ilícito e que a OAB deveria apurar suas origens, sob pena de perdimento em favor do Estado, os autores da nota se esquecem de que qualquer decisão nesse sentido prescinde de uma provocação de quem se julgar prejudicado e decisão judicial transitada em julgado nesse sentido, e não cabe ao advogado fazer uma investigação sobre a origem dos seus honorários, sob pena de estar usurpando a competência da polícia e do MP. Ademais, se o papel do advogado é justamente tentar livrar seu cliente de complicações, não pode perquirir sobre a licitude dos honorários, assim como ao político eleito não se exige folha-corrida de seus eleitores para ser votado.
Na nota, a Asmego dá a entender que a instituição da licença-prêmio se insere na legalidade das vantagens concedidas aos servidores públicos em geral, mas se esquece de que há várias vantagens que são exclusivas da magistratura, não estando ao alcance dos servidores comuns, como as férias de 60 dias, o auxílio-moradia, e outras já catalogadas no projeto da nova Loman, como o auxílio-transporte, quando não existir veículo oficial à disposição do juiz; adicional de deslocamento; ajuda de custo para mudança; indenização para transporte de bagagem; auxílio-alimentação; ajuda de custo para despesas com moradia em valor igual a 20% do salário, auxílio-creche, auxílio-educação, auxílio-plano de saúde, auxílio-funeral, sem se falar na extensão do plano de saúde a filhos de magistrados até os 24 anos e até em academia de ginástica se tem notícia.
Vai ecoar no vazio a grita da Asmego, pois os novos privilégios, que consolidam os já existentes e criam outros, ainda não foram para o Congresso, desde 1989, exatamente porque o STF teme a reação popular com mais regalias no contracheque, num tempo em que também o Judiciário posa de vilão perante a sociedade brasileira.
Hoje, no Brasil, os juízes de direito têm alguns benefícios restritos apenas à sua classe, e quando assumem os cargos, automaticamente recebem auxílios e gratificações que sofrem muitas críticas por serem, em alguns casos, desnecessários, no entender do leigo, que não se conforma em ver pessoas já bem aquinhoadas com polpudos salários serem ainda “estimuladas” com tais privilégios monetários. E – desta vez com razão – ainda que muitos magistrados pensem ser entidades onipotentes, os juízes brasileiros tem o papel de julgar processos a partir da lei e da Constituição, limitando positivamente os seus poderes de ação. E assim como outros trabalhadores, se equivalem a uma série de direitos e deveres, como qualquer mortal. Hoje somam quase dezessete mil magistrados no Brasil, e, ainda que sua produtividade tenha até aumentado, o país permanece abarrotado de processos sem julgamento.
Já se discutiu sobre as férias, e a ex-ministra Eliana Calmon defendeu sua revogação, quando estava à frente da Corregedoria do CNJ. Além dela, o já aposentado ministro Cesar Peluso, ex-presidente do STF, e o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcanti, afirmaram ser pessoalmente favoráveis à diminuição das férias. Não obstante, não resultou em nada.
E cada tribunal estadual trata de puxar a brasa para sua sardinha. Recentemente, têm-se discutido quanto à implementação do auxílio-alimentação. Enquanto alguns Estados brasileiros já possuem este benefício, outros não dispõem dele, dado que o CNJ ainda não regularizou para todos os magistrados. No Espírito Santo, por exemplo, o valor do auxílio concedido aos magistrados chega a cerca de R$ 1.600,00. O TJ-RJ enviou um projeto de lei à Assembleia Legislativa, instituindo o auxílio-educação para os filhos de juízes e servidores do TJ. O valor espantoso do auxílio mensal aos juízes seria de até R$ 7.250, e, para os servidores, de até R$ 3 mil. Ainda prevê aos magistrados e aos servidores do Judiciário auxílio para a própria educação: enquanto aos primeiros o valor chega a R$ 20 mil, aos últimos chega a R$ 540,00. Nem precisa saber se o projeto agradou a classe dos magistrados. Recentemente, foram os magistrados mineiros que surpreenderam. aprovando. resolução que dá a eles e a todos os juízes mineiros – cerca de mil – o direito de receber mensalmente entre R$ 2.279,73 e R$ 2.659,96 para custear despesas médicas – independentemente da apresentação de comprovante de gastos. A decisão pode virar assunto para o STF.
Mas encerro, citando a própria Constituição, quando, ao instituir o salário mínimo, diz: “Art. 7. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”.
Por que o pobre assalariado já traz embutidas no salário-fome as parcelas de alimentação, educação, transporte, saúde, etc, e o magistrado precisa acrescentar aos já polpudos salários uma parcela de auxílio-moradia, auxílio-alimentação, auxílio-paletó e outras que já estariam inseridas no próprio valor? Um dos desgastes do Judiciário reside nisso.
Fica a reflexão. Embora talvez tenha comprado uma briga com o pessoal da toga, que muito prezo, prefiro ficar em paz com minha consciência, aderindo, neste particular, à posição do pessoal da beca, neste caso mais bem representada por esse brilhante advogado, Alexandre Ramos Caiado, Presidente do Saeg, que tem dado mostras claras de altivez, coragem e consistência necessária para representar a digna Advocacia.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa - AGI e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas - Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado – liberatopo[email protected])