Está tornando-se um escândalo essas “gilmarzadas” do Supremo, a ponto de internautas já terem apelidado Gilmar Mendes de laxante, de “Lacto Purga”, pois a cada dia ele nos surpreende (sem, na verdade, nos surpreender mais), com alvarás concedidos para soltar notórios marginais, principalmente da classe empresarial, que, mesmo ordinariamente honrada, de vez em quando deixa escapar uma ovelha negra diretamente da cadeia para as páginas dos jornais.
O mínimo que se deseja de um magistrado, além da necessária coerência, é a credibilidade, para que o jurisdicionado tenha a confiança nas decisões de uma corte. E em razão de suas decisões que mudam ao sabor das circunstâncias, foi alvo de críticas, que geraram embates judiciais com a atriz e apresentadora Mônica Iozzi, o ator José de Abreu, o líder do MTST Guilherme Boulos, o jornalista Rubens Valente, o professor de ética Clóvis de Barros Filho, o jornalista Luís Nassif, e, mais recentemente, o promotor goiano Fernando Krebs. E ser polêmico não é bom para um magistrado.
Gilmar Mendes, que já estava sendo observado pela excessiva proteção ao empresário Jacob Barata Filho, com quem mantém estreita relação, expediu nesta semana mais uma decisão em seu favor, e agora diz publicamente que só esteve com ele uma vez na vida. Mas não é verdade. Eles já brindaram juntos até em Portugal, que – dizem as más línguas – seria um domicílio alternativo do homem de Diamantino.
Ao longo dos anos, o STF foi criando certas regras para evitar que processos repetitivos entrassem à toa na Corte. Isso aconteceu porque eram entendimentos tão consolidados dentro do Tribunal, que se justificava a criação de súmulas capazes de atalhar as decisões em processos similares e, assim, evitar mais sobrecarga. Uma delas estabelece que, enquanto o STJ (a instância imediatamente inferior), não decidir sobre um “habeas corpus”, um investigado não pode acionar o Supremo.
Mas, atropelando esse entendimento, e na contramão da lógica jurídica, não foi o que aconteceu no dia 7 de agosto passado: em uma semana, um pedido de HC chegou ao gabinete de Gilmar Mendes e teve seu desfecho. Na ação, o ministro admite que a situação se enquadrava na súmula e, por isso, não caberia no caso um pedido ao Supremo. Mas fez uma ressalva: por entender que o caso era tão absurdo, que ele não poderia se omitir. O interessado na causa era o empresário Jacob Barata Filho, um dos principais alvos da Operação Lava Jato no Rio de Janeiro e réu em uma ação penal; o empresário pedia que o processo fosse suspenso.
O caminho apontado pela defesa de Barata era um HC. Gilmar acolheu o argumento, concluindo que Jacob estava sob “constrangimento ilegal” por ter sido intimado para uma audiência, no dia seguinte, perante o juiz Marcelo Bretas. Gilmar considerou o chamado excessivo, inaceitável, porque havia dúvidas se Bretas era o juiz certo para o caso e, por isso, o mais apropriado seria evitar que a tal audiência ocorresse. O “constrangimento ilegal” era tão grave, na visão do ministro, que não apenas a audiência foi cancelada como o processo inteiro foi suspenso por ordem de Gilmar.
Barata, notoriamente amigo do ministro, acusado de evasão de divisas, foi pego no aeroporto do Galeão a caminho de Portugal, quando foi preso pela Lava Jato do Rio, sob a suspeita de pagar propinas em um longevo esquema de corrupção na área de transportes. Carregava dez mil euros não declarados e, também por isso, foi processado. A Lava Jato entendeu que esse dinheiro tinha conexão com a fortuna que ele fez nos esquemas investigados. Não fosse a decisão de Gilmar, Bretas seria o encarregado de julgá-lo. Agora, tudo fica parado até que o Supremo decida quem deve ser o juiz do caso. E certamente vai ser decidido nas calendas gregas.
Agraciado pelo despacho de Gilmar Mendes, Barata é um velho conhecido da Lava Jato e um daqueles raros réus acostumados a conseguir decisões rápidas no STF – sempre no gabinete do ministro. Jacob Barata foi preso pela Lava Jato, e solto por Gilmar três vezes. Não bastassem as decisões favoráveis à velocidade da luz dadas por Gilmar, há outros fatos que colocam sob suspeita as relações entre o ministro e o empresário. O então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, chegou a pedir que o ministro não mais julgasse processos envolvendo Jacob Barata porque Guiomar Mendes, mulher do ministro, é sócia do escritório de advocacia que atende o réu em outras ações. Além disso, ela e Gilmar foram padrinhos de casamento da filha de Jacob Barata, em 2013. Guiomar era tia do noivo. Outro ponto citado por Janot é que Barata é sócio de um do cunhado de Gilmar Mendes, irmão de Guiomar, em uma empresa de transportes.
O pedido de suspeição feito por Janot pode não prosperar porque a sua sucessora, Raquel Dodge, recuou. Mas, em razão do questionamento, o ministro teve que se explicar sobre Jacob Barata à presidente da Corte, Cármen Lúcia, na tentativa de convencê-la a mandar o assunto de vez para a gaveta. Gilmar escreveu 28 páginas para dizer que nada tinha a ver com Jacob Barata. E foi num parágrafo de duas linhas que a revista Crusoé descobriu, digamos, uma omissão por parte do ministro.
Ao se referir ao casamento da filha de Jacob Barata, da qual foi padrinho, o ministro afirmou que nunca foi próximo do empresário – e, sim, da família do noivo. Afirmou ainda que nem conhecia pessoalmente Jacob Barata. Assim escreveu Gilmar Mendes: “Vale frisar que em momento algum, anterior ou posterior à cerimônia, o arguido (ele próprio, Gilmar Mendes) teve contato com a família da noiva”. Pouco antes, ele dissera à imprensa que viu a família de Barata no casamento – e só.
Não é verdade. Dias antes, o camaleônico ministro deixou de mencionar um animado jantar que teve com Jacob Barata em uma de suas muitas viagens a Portugal. O encontro, confirmado àquela revista por gente ligada ao próprio Gilmar, ocorreu no balneário de Cascais, vizinho a Lisboa. O clima era festivo. Além de Jacob Barata e Gilmar, estava lá Francisco Feitosa, sócio do empresário e irmão da mulher de Gilmar; Chiquinho Feitosa, como é conhecido, tem negócios no Brasil e também em Portugal. À mesa, estava a advogada Dalide Corrêa, braço direito de Gilmar Mendes durante anos, inclusive no Instituto Brasiliense de Direito Público, o IDP, do qual o ministro é sócio.
Como a revista Crusoé revelou em junho, uma investigação da Polícia Federal coletou indícios de que a corrupta JBS usou a sede do instituto de Gilmar Mendes para tramar a oferta de 200 milhões de reais a juízes de Brasília encarregados de processos nos quais a companhia aparecia envolvida. O meio de campo foi feito justamente por Dalide Corrêa, a mulher-bomba que, como se vê, sabe também sobre a proximidade do ministro com Jacob Barata. Crusoé enviou perguntas a Gilmar sobre o encontro em Portugal com o empresário enrolado na Lava Jato, mas a sua assessoria informou, horas depois, que não conseguiu localizá-lo para obter as respostas.
Acho que é caso perdido tentar converter Gilmar Mendes em magistrado sério e coerente.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa - AGI e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas - Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado – liberatopo[email protected])