É cediço que durante relevante transcurso de tempo, o interrogatório, especialmente à época da ditadura militar, era compreendido tão somente como meio de prova, pois o denunciado era, então, tido como o objeto da prova. Nesse sentido, portanto, seu principal objetivo era a obtenção da sua confissão.
Hodiernamente, sob o espectro de uma visão garantista do processo penal, em que o acusado é sujeito de direitos, e no contexto do sistema acusatório, embora continue sendo um meio de prova (arts. 185 a 196 do CPP), é, também, um meio de defesa (natureza híbrida ou mista do interrogatório), consoante entendimento dos Tribunais Superiores.
Representa, assim, a oportunidade única em que o acusado possui para apresentar, pessoal e diretamente ao seu julgador, a sua versão acerca das inculpações que lhe são atribuídas na exordial acusatória.
Aliás, sabe-se que a Carta Política assegura ao acusado o exercício da ampla defesa[1]. Numa concepção primária, trata-se a ampla defesa de direito constitucional processual assegurado ao jurisdicionado subjetivamente. Por esse postulado, a parte que figura no polo passivo da relação processual penal exige do Estado-Juiz, a quem compete a prestação da tutela jurisdicional, o direito de ser ouvida, de apresentar suas razões e de contrapor as alegações de seu acusador, a fim de elidir a pretensão deduzida em juízo.
Tal garantia constitucional sobreleva-se pela composição advinda de relevantíssimo binômio, qual seja: defesa técnica (exercida pelo profissional do direito apto a representar os interesses de seu constituinte, em juízo) e autodefesa (capitaneada pelo próprio denunciado e manejada pessoalmente perante seu julgador em momento específico, denominado 'interrogatório').
Por ser, como visto, um meio de exercício da autodefesa, que é sempre disponível, permite o ordenamento jurídico que o acusado possa se calar, sem que seu silêncio seja interpretado em seu desfavor (direito ao silêncio – art. 5º, LXIII, CF e art. 186, CPP)[2].
Mister destacar, a seu turno, que o advento da Lei nº. 10.792/2003 facultou as partes, após as indagações do juiz, sugerirem perguntas ao magistrado (art. 188, CPP[3]), sem que pudessem, entretanto, interrogar diretamente o acusado. Manteve-se, assim, o sistema presidencialista de inquirição em relação ao interrogatório.
Nessa seara, tormentosa se apresenta a alteração legislativa decorrente do advento da Lei nº. 11.690/2008, que superou o sistema presidencialista na oitiva das testemunhas, nada obstando, por uma interpretação sistemática, que o juiz permita que as partes efetuem perguntas diretamente ao acusado.
Emerge, neste ponto, aspecto de grande relevância e que exige, por parte do magistrado e do advogado, extremada atenção no resguardo dos direitos do acusado, senão vejamos.
Inegável que o Ministério Público, em regra, assume a condição de parte no processo penal (com exceção da ação penal privada, em que intervirá como custos legis), razão pela qual é correto afirmar que sua atuação deve revestir-se de imparcialidade, haja vista que, como órgão estatal que é, deve almejar apenas a justa aplicação da sanção penal. Assim é que, mesmo tendo exercido a ação penal, poderá opinar pela absolvição do denunciado (art. 385, CPP[4]), bem como recorrer em seu favor ou, ainda, impetrar habeas corpus.
Sob prisma transverso, a rotina forense evidencia que a evolução legislativa pode haver se transformardo em verdadeira "armadilha" ao acusado, uma vez que, dentro de suas convicções, e valendo-se de ferramentas retóricas apuradas, pode o órgão acusador transformar um mecanismo de defesa (interrogatório), em um perfeito estado de deleite acusatório.
Imperioso salientar, sob esse enfoque, que qualquer técnica visando confundir o acusado deve ser rechaçada por aquele que zela pelos seus interesses. Dessa maneira, "...as perguntas que lhe são formuladas, portanto, devem ser claras, precisas, unívocas e não complexas. A fim de que as respostas representem o produto espontâneo da vontade do acusado, não se admite a formulação de perguntas equívocas, obscuras, tendenciosas ou capciosas, sendo vedadas, ademais, quaisquer formas de ameaças."[5]
Nesse aspecto, relevante a observação de que não se admite "que o acusado seja tratado como testemunhas, submetido a uma bateria de perguntas da acusação, capazes de comprometer sua autodefesa. O juiz deverá estar atento para não desnaturar o ato, impedindo que ganhe contornos de quase inquisitorialidade"[6].
Em adição, a fim de que seja respeitada a dignidade do acusado e o direito de não produzir prova contra si mesmo, não se admite o emprego, no interrogatório, de nenhum método tendente a extrair uma confissão, ou capaz de exercer influência indevida sobre a liberdade de autodeterminação do acusado.
Além dos aspectos acima pontuados, também são incompatíveis com a liberdade de autodeterminação do acusado no momento do exercício de sua autodefesa toda e qualquer forma de violência física ou moral para fazê-lo cooperar na persecução penal. Nessa linha, a doutrina cita "a questão da duração do interrogatório que, realizado durante longo espaço de tempo, sem intervalos, à noite, conduz o acusado à exaustão e à falta de serenidade para posicionar-se diante das perguntas formuladas, não deixando de caracterizar tais expedientes tortura ou, quando menos, tratamento desumano."[7]
Em breve síntese, tem-se que os órgãos estatais, em sua plenitude, devem zelar pela observância das garantias individuais asseguradas pela Constituição Federal, atentando-se o Estado, sob todas as suas vertentes, que também é destinatário das normas que edita, competindo-lhe rigor e zelo na sua aplicação, sob pena de se caracterizar, na seara processual penal, a prevalência da hipossuficiência do acusado, se comparado ao 'gigante' que o atribui responsabilidade penal. É assunto para se refletir...
(Leonardo Pantaleão é advogado criminalista, professor e palestrante de Direito Penal e Direito Processual Penal e sócio-fundador da Pantaleão Sociedade de Advogados)