Quantas vezes já ouvimos que as leis brasileiras são feitas para beneficiar os ricos e/ou prejudicar os pobres? A quantidade de vezes que já ouvi tal assertiva me leva a crer que parte significativa das leis vigentes em nosso país carregam essa estigmatizante mácula.
Leis aparentemente austeras são constantemente mitigadas por subterfúgios jurídicos e atalhos legislativos que normalmente só os endinheirados conseguem trilhar. Isso, talvez, ocorra em razão de os ricos serem detentores ou patrocinadores da quase totalidade dos cargos eletivos do nosso país. Apesar de eticamente questionável, inegável que legislar em causa própria é um privilégio imensurável.
Nessa senda, tudo leva a crer que as leis tributárias brasileiras também foram urdidas para favorecer os ricos e penalizar os pobres. A obra: A Reforma Tributária Necessária; consolida dados da OCDE e RFB que demonstram com esmerada clareza como o sistema tributário brasileiro é benevolente com os ricos e cruel com os pobres.
Oportuno sintetizar alguns exemplos do altruísmo das leis tributárias brasileiras em relação aos abastados, observem:
A tributação sobre o consumo, onde o pobre é mais afetado, representa cerca de 50% da carga tributária nacional, e apenas metade disso, cerca de 25% incidem sobre patrimônio (5%) e renda (20%), que pesam mais sobre os ricos;
Representando menos de 1% da população, os ricos usufruem de 70% de toda a isenção concernente ao Imposto de Renda Pessoa Física - IRPF;
As alíquotas efetivas do IRPF são progressivas até 40 salários mínimos e regressivas a partir desse patamar, despencando de 12% para 6% quando a renda atinge patamar superior a 160 salário mínimos por mês;
A alíquota máxima do imposto brasileiro sobre heranças é de 8%; contra 22% da Argentina, 35% do Chile, 40% dos EUA, 50% da Alemanha, 55% do Japão, 60% da França, 64% da Espanha e 80% da Bélgica;
O comemorado fim da obrigatoriedade da contribuição sindical que financiava entidades representativas dos trabalhadores, não alcançou as contribuições obrigatórias do chamado Sistema “S” (Senai, Sesc, Sebrae, Senat e Senar); que se tratam de entidades patronais dirigidas pelo grande empresariado, cujas atividades são financiadas através da tributação mensal da folha de pagamento das empresas com alíquotas que chegam a 3%;Os crimes tributários no Brasil não são de “conduta” mas de “resultado” cuja materialização depende de um intrincado e demorado contencioso administrativo, e, mesmo ao final desse contencioso, há possibilidade de o sonegador ver a sua punibilidade extinta ou suspensa com o pagamento ou parcelamento do débito, que na maioria da vezes ocorre através de programas fiscais de recuperação que reduzem ou eliminam as multas aplicadas em razão da infração praticada, às vezes o perdão fiscal alcança até mesmo os juros e a correção monetária incidentes sobre o débito. Trata-se, pois, de um verdadeiro prêmio ao sonegador.
As grandes empresas conseguem cumular benefícios com incentivos fiscais do ICMS, o que, na prática, chega a reduzir a carga desse tributo estadual para cerca de 1% do faturamento bruto da grande empresa beneficiada. Trata-se de uma carga tributária de ICMS equivalente à que incide sobre microempresas enquadradas na menor faixa de tributação do Simples Nacional, e quase quatro vezes menor caso essa empresa esteja enquadrada na maior faixa do mesmo Simples Nacional;
Iates, lanchas, Jet Skis, jatinhos e helicópteros; bens duráveis de elevadíssimo valor, não obstante se enquadrarem no conceito de veículo automotor, não sofrem incidência do IPVA;
Com previsão constitucional desde 1988, 30 anos depois, o Imposto sobre Grandes Fortunas - IGF, ainda não faz parte da agenda tributária do governo federal, sequer havendo nesse tempo um debate razoável sobre o tema por parte do Congresso Nacional.
Outro emblemático exemplo que entendo ser o suprassumo da benevolência tributária que a legislação brasileira dedica aos ricos, é o fato de o Brasil isentar de impostos os lucros e dividendos auferidos pelos ricos. Em todo o planeta, fora o Brasil, somente a Estônia teve a especial gentileza de isentar de impostos o topo da pirâmide social.
Não à toa pesquisadores do Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (Ipcig), vinculado ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em sua pesquisa concluíram que:
“[...] o Brasil é um país de extrema desigualdade e também um paraíso tributário para os super-ricos, combinando baixo nível de tributação sobre aplicações financeiras, uma das mais elevadas taxas de juros do mundo e uma prática pouco comum de isentar a distribuição de dividendos de imposto de renda na pessoa física”(grifamos)
Ora, se a lei tributária brasileira atende muito bem as necessidades que os ricos têm de manter e aumentar a própria riqueza, resta entender então por que eles ainda clamam por reformas. A resposta é singela: querem simplificação, transformando o que já é bom em ótimo!
Não estamos aqui criticando a necessidade de simplificação do arcabouço tributário brasileiro, que, em muitos casos, causa embaraços ao próprio fisco. Outrossim, enviar proposta de reforma tributária ao legislativo sem previsão de revisão da perversa lógica de tributar mais o consumo e menos o patrimônio e a renda, apresenta-se socialmente inaceitável.
A simplificação pura e simples seria a infeliz consagração do problema da tributação brasileira: a injustiça! Chega a ser covarde clamar por reformas para, ao final, preservar o pesado ônus que nossa tributação ocasiona às camadas mais pobres da sociedade, viabilizando assim que os donos da riqueza brasileira continuem a não subsumir seus vultosos rendimentos e patrimônio à tributação progressiva, conforme a respectiva capacidade contributiva.
Doutra banda, quando os autores da proposta de simplificação nua e crua do sistema tributário apegam-se no princípio existente no art. 179 da CF/88 - visando estender aos grandes o que a Constituição reserva somente aos pequenos - acabam cometendo outro desserviço social, aprofundando ainda mais a realidade regressiva do nosso sistema tributário.
Isso porque sistemas tributários efetivamente justos e progressivos, que taxam mais quem ganha mais, necessitam de mecanismos de fiscalização e controle mais complexos, tanto para manter a progressividade necessária do sistema, quanto para aferir a capacidade efetiva de contribuição de determinado contribuinte; circunstâncias que vão, curiosamente, na contramão da simplificação almejada pelos ricos.
Destarte, uma reforma que seja minimamente justa deve ir além da mera simplificação do sistema, buscando, sobretudo, reduzir a desigualdade e promover o desenvolvimento social e econômico. Para tal, não basta reduzir bases e alíquotas fiscais, mas principalmente redistribuir a carga tributária para que a lógica da capacidade contributiva, da progressividade e da essencialidade; ganhem real sentido no cotidiano do brasileiro comum.
A diminuição das desigualdades sociais e o desenvolvimento econômico, passam, obrigatoriamente, por uma reforma tributária justa e solidária; que se encontra bem distante da mitomania que carrega a proposta de simplificação defendida no Congresso Nacional por notórios representantes dos ricos.
Devemos, vigorosamente, atacar de frente as incongruências do nosso sistema tributário para, finalmente, viabilizar e fazer valer o Estado Social que os brasileiros merecem, especialmente os mais necessitados.
Setembro/2018
(Cláudio Modesto, auditor fiscal da Receita Estadual, diretor jurídico do Sindifisco/GO)