Conheci Liberato Póvoa em Palmas nos dias pioneiros da capital tocantinense. Ele era desembargador, um dos mais jovens do Brasil. Tinha sido juiz de Direito nos grotões tocantinenses. Fez carreira de escritor jurídico e agora vem se impondo como autor de crônicas regionalistas. Sua última obra é Que saudades de São José do Duro! Tipos e Causos. Trata-se de uma compilação de crônicas publicadas aqui no Diário da Manhã. Na verdade, reminiscências da gente e da paisagem de sua cidade natal, Dianópolis, antigo Arraial de São José do Duro.
Liberato dá à sua escrita uma atraente cor local. Mas não se perde em maneirismos folclóricos, não abusa do pitoresco. Sóbrio, mas com leveza, sem muita gravidade. Ele apenas vernaculiza o falar do tabaréu do sertão, criando uma sintaxe particular. Não chega a ser original nisso. Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Jorge Amado – todos faziam coisas assim. Querem mesmo saber? Foi Dante quem inventou esse negócio. Ao invés de versejar em latim, como Ovídio, Juvenal, seus compatriotas, preferiu escrever a sua Divina Comédia em Vulgar, isto é, na língua que o comum do povo falava, o occitano, que, graças ao poeta, emergiu como o idioma italiano de hoje em dia.
O problema de alguns regionalistas é que eles, às vezes, exageram na dose. Afetam ingenuidade caipira e, nisso, acabam reduzindo o tipo social do sertão a uma caricatura ridícula, síntese grotesca do bom selvagem rousseauniano. Penso que deve ser por isso, em parte, que o regionalismo perdeu prestígio entre nós, nos últimos anos. Hoje em dia, nenhum candidato a escritor quer ser regionalista. E 11 entre 10 críticos literários caluniam todo diariamente o regionalismo, lançando maldições sobre os grandes escritores que honraram a escola.
O preconceito antirregionalista de nossos críticos é pura manifestação de alienação política e de mentalidade colonizada. Só falam veneno. É neurose de pobre que, tendo enricado um tiquinho, sente vergonha do seu passado proletário e tenta apagá-lo. Ninguém mais odeia um pobre do que um ex-pobre.
Não obstante, é o regionalismo que referencia a literatura brasileira lá fora. O mundo culto das estranhas adora a estética regionalista. Jorge Amado, Rosa e Érico Veríssimo continuam sendo traduzidos e lidos em todo o mundo, não dando a mínima para os que escrevem sobre os draminhas sentimentaloides dos pequeno-burgueses das grandes capitais. Só os com espírito de vira-lata não gostam das sagas sertanejas. Melhor assim: sobra mais para nós, que gostamos. Lembro-me de ter ouvido, em uma livraria na Avenida Champs Eliseé, perto de onde morou Marcel Proust, uma jovem com ares de universitária demandar ao vendedor: “Você tem aí o Diadorram?” O vendedor lhe passou um grosso volume, que a moça comprou toda feliz. Fui ver de perto: “Diadorram” é Diadorim, o título da edição francesa de Grandes Sertões: veredas.
Não adianta, pois, os esnobes torcerem o nariz. A feijoada, o samba, os filmes de Glauber Rocha e a literatura regionalista são coisas nossas, expressões genuínas da brasilidade. Quando recuperarmos o orgulho de sermos brasileiros, na batata, saberemos dar valor a livros como este de Liberato, que veio à lume – gostaram do “à lume”? – pela famosa casa editora lá da Vila Fama, a Kelps.
Sim, meus caros e caras leitoras, a prosa de Liberato é nostálgica. Mas nostalgia não desmerece ninguém. É questão de dose. A de Liberato é parcimoniosa. Ele fala com ternura das pessoas com quem conviveu, do povo miúdo do sertão, sem cair na pieguice. Exalta-lhes a dignidade, a altivez sem presunção e sem arrogância dos que ainda vivem nos grotões. Gente inculta, na maioria das vezes; quase sempre sábia, porém. Gente que desenvolveu ao mais elevado patamar a arte de bem viver. De viver bem, apesar dos pesares.
Do que mais Liberato tem nostalgia é daquele modo de vida típico das comunidades sertanejas de antigamente, dos tempos da meninice dele, tempos indolentes que foram também os da minha meninice. Quem foi menino no Brasil antes dos generais fascistas terem instalado uma ditadura escrota neste País ainda se lembra de que aqueles foram tempos de vida tranquila, sem sobressaltos, sem aflição em face do dia de amanhã, um dia que haveria de ser como os outros. E acaba sendo.
Eram tempos em que havia dignidade na pobreza. O Brasil do Centro-Oeste não conhecia aquela miséria degradante de que falava Victor Hugo em seus romances. O pobre não era miserável. O pobre, por mais pobre que fosse, tinha um teto para morar, um quintalzinho onde engordava o leitão, criava umas galinhas e plantava seus legumes. Não havia supermercados em shopping centers. Em casa mesmo de um tudo se fazia. Menino tinha lombriga mais por ignorância dos pais sobre saneamento básico do que por falta do de-comer.
Eram tempos em que não se sabia o que fosse inflação. Mesmo porque dinheiro não havia. Como diz lá velha modinha baiana: “Dinheiro não corre, mas de fome ninguém morre.” Morria-se de fome no Nordeste por causa das secas que davam pretexto ao latifúndio para expulsar camponês. Mas em Goiás, e naquele país vizinho que chamávamos de “Norte de Goiás”, vivia-se a vida despreocupadamente. Mesmo os muito ricos não tinham tantos luxos e facilidades como têm os burgueses ostentadores de hoje em dia. Tanto o coronel quanto o vaqueiro se locomoviam a cavalo. O que os distinguia, socialmente, é que as esporas de um eram de prata.
Liberato lamenta esse tempo que se foi. Como um Proust do sertão, só que menos prolixo, sai de pena em punho em busca do tempo perdido. Mas a Liberato falta, talvez, uma compreensão científica do porquê de as coisas não servem mais como costumavam a ser. Nem podemos exigir de um literato que faça ciência social. Balzac nunca raciocinou em termos de luta de classe; todavia, Marx viu em sua literatura o retrato sem retoques da burguesia reacionária do período áureo do capitalismo. Victor Hugo também não era sociólogo ou historiador. Na verdade, Comte ainda nem tinha cunhado o termo “sociologia”. Mas retratou como ninguém a dura realidade do proletariado e desmascarou a suposta magnanimidade do sistema judiciário criado pela burguesia como alternativa à jurisprudência medieval. Jean Valjean que o diga.
O mal-estar da
modernidade
Os bons tempos de outrora, aqueles tempos idílicos que os antigos chamavam de tempos da “fartura”, não foram destruídos por acaso. O desenvolvimento capitalista o matou. O capitalismo, no seu avanço inexorável, destrói as sociedades tradicionais, reduz a escombro as mais veneráveis tradições. Substitui pelo modernismo, ou modernidade, a velha cultura idílica das sociedades agropastoris. Tudo que é sólido derrete no ar. Esta denúncia está lá no Manifesto Comunista com todas as letras para bom leitor entender. A literatura regionalista é o testemunho que declara a procedência do libelo marxista.
A literatura regionalista é o grito de dor em face da opressão moderna. É a poética do que Freud chamou de “mal-estar da civilização”. O paradoxo dos tempos atuais é que a humanidade, embora tenha atingido o mais alto grau de desenvolvimento material, para tornar a vida mais fácil e mais confortável, está a humanidade cada dia mais infeliz, insatisfeita, frustrada, e nem mesmo a religião nos consola. O ópio também perdeu seus poderes entorpecentes. Aquilo de que não precisamos é o que mais desejamos.
O regionalismo é, assim, a primeira trincheira da luta cultural contra a modernidade. É o momento em que percebemos que a modernidade é desumanizante, alienante, opressora e diabólica. Só os cínicos ou os muito ingênuos podem defendê-la. Serei condescendente para com os que identificam na modernidade o advento do novo. Compadecei-vos, Senhor, dos que veem na modernidade uma onda novidadeira, que é o conceito que dela fazem os publicitários, esses seres vis que acendem vela a Mamom, o deus dinheiro.
A modernidade é a cultura da burguesia industrial, citadina, hostil a tudo que remeta à vida campestre e aos valores da vida comunitária. Modernidade é a cultura que confere excelência ao vulgar e que tenta, mentirosamente, nos convencer de que o “novo”, ou o recente, é o que há de melhor e apetecível. E ainda zomba de nós que cultivamos outros valores, que nos batemos por uma ética não mensurável financeiramente. Marx e Engels, Freud, Victor Hugo e Zola, Nietzsche, Kierkegaard, Sartre, os contraculturalistas dos anos 60, cada qual por suas peculiares razões, foram os mais ferozes críticos da modernidade e denunciaram suas mazelas, suas mentiras, sua impostura. Entre nós, coube aos regionalistas a tarefa de desmascarar o impostor. Vida longa a todos eles!
Não existe mais a mínima possibilidade de voltarem os tempos da fartura. Dianópolis não voltará a ser o São José do Duro dos tempos de Abílio Wolney, ou dos tempos do menino Liberato. Ficará para sempre como um quadro, cada vez mais desbotado, na parede da memória. Um quadro que só não desbotará de todo porque Liberato está sempre repintando-o.
Mas deixa estar. A modernidade também passará, como se passaram todos os reinos deste mundo. E dia virá que um novo reino de justiça social e de progresso cultural trará de volta um novo tempo de fartura, só que em outras bases. Dia virá em que a tecnologia estará a serviço do homem, e não engajada na tarefa vil de emburrecer, e embrutecer, as pessoas. Nesse dia, a glória de São José do Duro, e de tantas vilas sertanejas deste Brasil, será restaurada em todo o seu comovente esplendor. Não para celebrações nostálgicas, mas para o brinde do homem novo reencontrado com sua perdida humanidade. Espere, pois, Liberato, o dia que já vem vindo, que esse dia vai chegar! Brindemos a isso.
(Helvécio Cardoso, jornalista)